Uma revolução comprada no chinês

Este Pílades é uma produção dos dois teatros nacionais, São João e Dona Maria II, três se concordarmos com a opinião que a Cornucópia é o verdadeiro teatro nacional. Teatro mais oficial não há

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Dinis Gomes (Pílades) saindo de cena
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Luís Miguel Cintra (o Velho), assiste à discussão de Duarte Guimarães (Orestes) e Dinis Gomes
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Orstes tenta persuadir a irmã Electra (Sofia Marques)
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Sofia Marques (Electra)
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Uma das Euménides (Fúrias)
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Rita Durão (deusa Atena)
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Dinis Gomes com uma das Euménides

Uma bandeira vermelha é erguida no final deste espectáculo por Luís Miguel Cintra, decano dos actores e encenadores portugueses, este ano homenageado pelos pares no Festival de Almada. Não é ele, claro, mas antes uma personagem, no caso um velho, que prepara cuidadosamente a bandeira, a faz esvoaçar timidamente e depois a usa para cobrir o corpo adormecido de um jovem. Porém, não deixa de ser a figura real de Cintra que coincide com a figura de estilo em cena: um velho empunha um pavilhão vermelho. O que vem a significar isto?

Este espetáculo pretende reflectir uma imagem de Portugal contemporâneo, 40 anos depois da revolução, numa imagem da Itália do pós-guerra, por sua vez reflectida no mito de Orestes. A realidade não se escusa. Na ponta desse jogo de espelhos vemos, antes de mais, os três mais resistentes actores da Cornucópia, acompanhados por quatro actores do grupo já nascidos nos anos 70, e ainda por uma mão cheia de jovens nascidos em datas posteriores a tudo. Poderão estes actores encarnar a derrota colectiva e individual da geração que fez o 25 de Abril, o 11 de Março e o 25 de Novembro?

Não se espera que o actor saia do palco com a bandeira na mão e marche com o elenco até à escadaria da Assembleia da República em protesto. Mas um pouco de inquietação em palco levaria o espectador a pensar que, um dia, talvez isso seja possível. Pelo contrário, os problemas e contradições do país lá fora não passam por estes corpos, claramente tranquilizados com a perspectiva de fazer uma récita após a outra o mais cuidadosamente possível. O tom das falas é coloquial e a postura física é neutra. Quando é preciso criar tensão, os corpos e as vozes desenham figuras que representam o conflito, mas não são conflituosos. O elenco não tem peso. O povo é sereno?

As fúrias não são incorporadas. A própria peça representa esse impasse, dada a sua incapacidade para gerar um desfecho trágico. Numa cultura dominada pela ideia de redenção, não surpreende que a forma narrativa mais comum seja a do folhetim semanal, que continua liturgicamente na próxima semana, e não a tragédia ritual. Pasolini acrescentou um episódio à trilogia de Orestes antecipando o estado de espírito dos nossos tempos. Vivemos não o fim da história, mas a diluição da história numa série de TV sem fim. Tudo isto existe, tudo isto é triste, nada disto é trágico.

Os momentos de maior teatralidade e contradição deste espectáculo são aqueles em que Isac Graça faz um travesti mimar canções italianas. Não só o corpo do actor contrasta com a imitação que faz (ou incorpora), como a fantasia do intérprete contrasta com a fantasia do resto do espectáculo, dando-lhe vida. Qualquer assistente de produção do TNSJ saberia encaminhar a equipa para um lugar onde os números de travesti são realmente perigosos para quem os vê. Mas enquanto isso não acontece, pelo menos estes momentos colocam o espectador em confronto com algo de concreto: o desejo de ser outro.

Sem pôr em causa as formas de fazer teatro, um espectáculo dificilmente passa por revolucionário. Ainda que o tema seja a revolução, a forma será conservadora. Este Pílades é uma produção dos dois teatros nacionais, São João e Dona Maria II, três se concordarmos com a opinião que a Cornucópia é o verdadeiro teatro nacional. Teatro mais oficial não há. Nesta mesma semana, um centro de cursos de inglês iniciou uma campanha publicitária cujo slogan é “faz a tua revolução a partir de 74 euros por mês”. Pode ver-se em cartazes espalhados pela cidade no caminho para o teatro. Onde é a porta de saída?

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