Rivais afegãos vão governar em conjunto numa solução sem precedentes nem garantias

Ghani, que terá vencido a segunda volta, será Presidente; Abdullah um primeiro-ministro com poderes reforçados. Foi a solução encontrada depois de umas eleições marcadas por muitas fraudes.

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Abdullah (à direita) e Ghani vão dividir o poder Wakil Kohsar/Reuters

Deveria ter sido a primeira transferência democrática de poder no Afeganistão, mas neste país há mais de 40 anos mergulhado em guerras pouco acontece como deveria. Cinco meses depois da primeira volta das presidenciais, os dois candidatos que disputaram a segunda volta assinaram este domingo um acordo de partilha de poderes. As provas de fraude eram tantas que ambos tinham rejeitado os resultados e retirado os seus observadores de uma auditoria à recontagem supervisionada pelas Nações Unidas.

Ninguém sabe se a solução encontrada para ultrapassar o bloqueio político – e que não está prevista na Constituição – vai resultar, nem se os novos líderes vão conseguir fazer tudo o que Hamid Karzai não fez em 12 anos. Mas dentro de dias, os afegãos terão um novo Presidente: Ashraf Ghani. O derrotado, ninguém sabe por quanto, Abdullah Abdullah, primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros de Karzai e ex-comandante da guerrilha anti-taliban, vai escolher um primeiro-ministro, descrito como uma espécie de director-executivo (CEO) do país. Abdullah pode nomear-se a si próprio para o cargo, que terá um mandato de dois anos.

Este CEO vai "responder ao Presidente", mas ambos decidirão as nomeações do resto do executivo. Como se lê no documento assinado, "as duas equipas estarão igualmente representadas ao nível da liderança".

Karzai manteve-se no poder a custo, com a protecção das tropas estrangeiras, mas sem nunca conseguir de facto governar um enorme e etnicamente diverso território, entre a Ásia Central e o subcontinente indiano. Ainda assim, é na figura do Presidente que se concentram grande parte dos poderes executivos, pelo que é difícil antecipar como é que Abdullah e Ghani poderão governar realmente em conjunto. Até agora, nunca houve um primeiro-ministro no país.

Por saber continuam os números finais da votação e também como é que os afegãos receberam a notícia deste acordo. Ghani venceu a segunda volta, em Junho; Abdullah tinha tido mais votos na primeira, em Abril. Peritos internacionais estimaram na altura que dos oito milhões de votos expressos em Junho, dois milhões de boletins com o nome de Ghani, eram fraudulentos, o mesmo acontecendo com 800 mil a favor de Abdullah.

"A Comissão Eleitoral Independente declara Ashraf Ghani Ahmadzai Presidente do Afeganistão", anunciou numa conferência de imprensa o chefe da comissão, Ahmad Nuristani, horas depois da cerimónia breve em que o acordo foi assinado. Admitindo que a auditoria não tinha permitido "deter ou afastar a fraude completamente", Nuristani afirmou que os resultados ainda serão conhecidos, sem adiantar quando.

Fonte de problemas
Alguns políticos não esperaram para comentar as possíveis consequências de ter um Presidente e um governo em funções sem que os resultados finais sejam partilhados com a população. "Nenhuma instituição tem o direito de ignorar um único voto do povo afegão", disse Jafar Mahdawi, deputado de Cabul que apoia Ghani. "Este acordo é inconstitucional e baseia-se na ideia de que um governo de unidade vai, a curto prazo, mitigar as tensões, mas a longo prazo será fonte de problemas".

Internacionalmente, as recções foram de alívio, com o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, a celebrar "a enorme oportunidade" que se abre com o acordo – segundo o jornal The Washington Post, Kerry telefonou 13 vezes a Ghani e 14 a Abdullah nos últimos dias; o próprio Presidente Barack Obama fez três telefonemas para cada um.

"Uma estrutura de unidade difícil e com desafios é preferível a um conflito entre estes dois grupos", disse um responsável dos EUA citado pela Reuters. "Ter os dois a trabalhar juntos num governo e a dirigir as suas energias no sentido de uma reforma positiva é melhor do que algumas das alternativas."

Nos últimos meses, apoiantes de um e de outro candidatos quiseram formar governos paralelos, enquanto as acusações de fraude e o impasse serviam para reavivar tensões étnicas: entre a maioria pashtun do Sul, favorável a Ghani, um economista de 65 anos, e a minoria tajique do Norte, etnia a que pertence Abdullah. Ao mesmo tempo, a violência voltou a aumentar, precisamente quando grande parte das tropas da NATO se prepara para deixar o país.

A herança e o futuro
"Espero que ambos consigam fazer as coisas que eu não consegui", afirmou Hamid Karzai, o líder escolhido para assumir o poder depois do derrube dos taliban, no fim de 2001, e depois confirmado nas urnas para dois mandatos. Dos serviços públicos à segurança, passando pelo combate à corrupção, há uma pesada herança.

Tanto Ghani como Abdullah tinham prometido melhorar as relações com os EUA, que foram crescentemente mais difíceis nos últimos anos. E a Casa Branca esperava ansiosamente por este anúncio e por um interlocutor para terminar de debater e assinar um acordo bilateral de segurança. No âmbito deste acordo, a partir de 2015 a NATO deverá deixar no Afeganistão uma força reduzida de 12 mil militares (quase todos norte-americanos). A missão afegã chegou a ter 150 mil soldados (2010) no terreno e conta hoje 41 mil.

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