Queer Lisboa sob o signo da maioridade

A 18.ª edição do Festival Internacional de Cinema Queer tem a programação mais abrangente de sempre, confirmando o desejo da organização de abrir a outros e mais públicos. A abertura é esta sexta-feira com o filme brasileiro Hoje Eu Quero Voltar Sozinho.

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Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, do brasileiro Daniel Ribeiro, é o filme de abertura do festival DR

A haver ano em que o Queer Lisboa possa “dar o salto” para um público mais alargado e abrangente, será este. A 18ª edição do certame de cinema de temática queer (bissexualidade, homossexualidade feminina e masculina, transgénero) inicia-se esta sexta-feira no Cinema São Jorge e, ao longo dos próximos nove dias, propõe filmes e ciclos que transcendem em parte o simples “armário” em que o cinema queer tem tido tendência a encerrar-se.

A abertura e o fecho, por exemplo, fazem-se com filmes provenientes do fervilhante momento que o cinema brasileiro vive e que tem atraído a atenção dos grandes festivais internacionais, com O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, como “ponta-de-lança”. A inauguração oficial é esta sexta-feira à noite, com Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, “expansão” por Daniel Ribeiro da sua curta-metragem Eu Não Quero Voltar Sozinho (premiada, curiosamente, no Queer 2012), e recém-chegada do Panorama de Berlim 2014, onde foi muitíssimo bem recebida; o encerramento, no sábado, 27, é com um filme do veterano Bruno Barreto (o autor de Dona Flor e Seus Dois Maridos), Flores Raras, baseado num affaire lésbico verídico que teve lugar no Brasil dos anos 1950 e que conta nos papéis principais com Glória Pires e a actriz australiana Miranda Otto.

A retrospectiva principal pertence a John Waters, um dos ícones do cinema independente americano anterior à sua “absorção” pelo sistema de Hollywood nos anos 1990, e realizador mais conhecido pela dimensão genericamente transgressiva da sua obra do que propriamente pela sua conotação com uma qualquer sensibilidade queer (apesar da presença do lendário travesti Divine). E o ciclo paralelo Queer Focus África tem como ponto alto a exibição de um dos filmes-chave do cinema africano pós-colonial, Touki Bouki, do senegalês Djibril Diop Mambety, um daqueles objectos que foi sendo falado de boca em boca, mas que só após o seu restauro em 2008 pela World Cinema Foundation, de Martin Scorsese, foi finalmente reconhecido mundialmente – e que em nenhum momento dos seus 40 anos de idade foi identificado como um “filme queer”.

João Ferreira, director do festival, sempre defendeu em entrevistas ser importante para o Queer Lisboa “sair do armário”, assumir uma vocação de festival abrangente e aberto, e edições anteriores permitiram ver filmes de François Ozon, Claire Denis ou Nagisa Oshima. Mas – talvez para brincar com esta ser a 18ª edição, a idade da maioridade... é este ano que mais se sente essa vontade de se abrir ao público. Que coincide igualmente com um momento de transição global para a visibilidade e aceitação da comunidade LGBT, com o terreno ganho em todo o mundo pela legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo a contrastar com o recrudescimento da intolerância para com a homossexualidade em África ou na Federação Russa.

Perguntar, no entanto, se isto se reflecte minimamente na visibilidade do cinema queer no cada vez mais fragmentado mercado cinematográfico (português ou estrangeiro) é exercício inútil. Se a regularidade do Queer já o tornou num dos pontos de paragem obrigatórios da rentrée do circuito de festivais portugueses, o seu impacto no mercado de exibição e distribuição continua a ser inexistente.

A grande maioria dos filmes mostrados no certame raramente têm difusão pelos circuitos tradicionais de exibição, e obras mais abrangentes acabam por ficar de fora para não serem excessivamente conotados com uma etiqueta que lhes pode limitar a audiência. Mas que a etiqueta “queer” já não é forçosamente o “veneno” de outros tempos é comprovado pela estreia coincidente na televisão portuguesa de Looking, a série de comédia do canal HBO sobre as aventuras de três amigos gay em São Francisco que, estreada em Janeiro último, foi redutoramente descrita como “a versão gay de Sexo e a Cidade” (começou esta semana no canal de sinal codificado TVSéries e passa todas as quintas-feiras, às 23h). Que foi acompanhada por um programa de filmes queer nos canais TVCine e TVSéries (como a biografia de Liberace, por Steven Soderbergh, com Michael Douglas, Por Detrás do Candelabro, a adaptação televisiva, por Mike Nichols, da peça premiada Anjos na América, com Al Pacino e Meryl Streep, ou o telefilme vencedor de Emmy sobre a luta contra a sida, Um Coração Normal, com Julia Roberts). Algo que era impensável há alguns anos e que confirma que, 18 anos depois do primeiro Queer Lisboa, o armário está cada vez mais aberto.

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