Pedofilia e pedofobia

Na escala de valores da opinião pública e do poder judicial, não há no nosso tempo crime mais hediondo e repulsivo do que a pedofilia. Uma proposta recente da ministra da Justiça mostra que o poder judicial acompanha esse sentimento de que se trata de um crime imprescritível, irreparável e tão próximo de um instinto animal que a única maneira que a sociedade encontra para se defender dos pedófilos é isolá-los e assinalá-los para sempre perante os pais das crianças. Nestas circunstâncias, será possível falar da pedofilia, como uma questão de enorme complexidade, sem nos limitarmos a proferir interjeições de horror? Tentemos.

A figura do pedófilo, tal como ela é hoje caracterizada, nas ressonâncias que o simples nome difunde, é uma categoria recentíssima. Prova disso é o facto de em 1980 um escritor francês (Tony Duvert, 1945-2008) ter publicado um livro que seria hoje impensável, numa editora tão respeitável como a Minuit (a editora de Beckett, de Duras, etc.). O livro chama-se L’enfant au masculin e é uma reunião de ensaios onde o autor faz o elogio da pedofilia como “cultura”. Um ano antes, Tony Duvert tinha sido entrevistado para o Libération por Guy Hocquenghem; essa longa entrevista está hoje disponível on-line com a seguinte advertência: “Attention! Contenu très explicite. Apologie de la pédophilie”. Alguns anos antes, também em França, Michel Tournier tinha publicado um romance, Le Roi des Aulnes, que exaltava a sexualidade pré-adolescente. Que ideia veiculavam essa literatura e esses textos de carácter ensaístico que nos surgem hoje como uma aberração? Em primeiro lugar, a pedofilia estava ainda isenta da equivalência que se estabeleceu, entretanto, com a violência física exercida sobre crianças e até sobre bebés. O pedófilo reivindicava uma espécie de sexualidade doce, carinhosa, não genital. A violência da genitalidade era, aliás, do ponto de vista analítico, o motivo para a rejeição da sexualidade adulta. Restava, porém, a inevitável violência simbólica, traumática. E aí os defensores de uma pedofilia culturalizada e politizada recorriam à caução freudiana: a criança vive a sexualidade e o modo com a gere implica sempre violência, trauma, ilusão. Freud tinha mesmo elaborado uma teoria da sedução baseada nos testemunhos das suas doentes, que pretendiam ter sido seduzidas sexualmente, na infância, por alguém da família, para depois a abandonar em favor da teoria de que não tinha havido necessariamente uma cena real de sedução, mas apenas a imaginação da cena pela criança. Segundo Freud, o que se passava no imaginário produzia exactamente o mesmo efeito que a realidade, e a memória elaboraria depois a cena sem distinguir entre o real e o imaginário. Ora, a pedofilia politizada baseava-se na ideia de que a família era a maior fonte de violência sobre a criança, sobretudo sobre a sua sexualidade, e por isso era preciso ajudar a libertá-la, dar-lhe um prazer que o contexto familiar lhe negava, fazê-la aceder a um território livre da lei edipiana. Para a imagem que se criou entretanto da pedofilia, tudo isto parece repugnante ou, pelo menos, exótico, pertencente a um mundo que já não existe. Talvez venha o dia em que a ideia em curso de aplicar chips nas crianças para as poder localizar em qualquer sítio e a qualquer hora seja vista como um projecto paranóico, prova de que numa sociedade securitária e de controlo já não há lugar para as crianças. Assim como os novos regimes de liberdade sexual não passam de uma estatização da sexualidade, o pavor da pedofilia engendrou a pedofobia. 

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