Entre a música e a mafia

Clint Eastwood adapta um êxito da Broadway sobre putos a fugir ao subúrbio. Mas não consegue evitar que Jersey Boys pareça feito à medida de Martin Scorsese.

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Trailer Jersey Boys

Desde Gran Torino (2008), que arvorava de modo quase ostensivo uma dimensão crepuscular, testamentária, Clint Eastwood tem vindo a acrescentar “epílogos” e “posfácios” a uma obra que ganhou com o tempo uma coerência e uma consistência invulgares. Que o mesmo é dizer, filmes que nada parecem adiantar, e que parecem existir apenas para que um cineasta que sente (correctamente) já nada ter a provar e que se pode dar ao luxo de fazer o que lhe apetece possa continuar a exercitar os músculos sem perder a mão.

Ao mesmo tempo, a sequência composta por Invictus (2009), Hereafter – Outra Vida (2010) e J. Edgar (2011), e que vem agora dar a Jersey Boys, coloca mais do que nunca Eastwood/realizador como “último resistente” dos velhos homens de mão dos grandes estúdios, que faziam tudo o que lhes fosse encomendado sem problemas de consciência e o melhor que soubessem. 
O que torna tudo ainda mais peculiar é a sensação de que, com
Jersey Boys, adaptação de um êxito da Broadway sobre a carreira do cantor Frankie Valli e dos Four Seasons, Eastwood está a “fazer Scorsese”. Isto é, a entrar pelo território das mean streets nova-iorquinas que o autor de Taxi Driver fez seu, e a fazê-lo de um modo que nos leva a pensar se este não seria mais um filme para Scorsese do que para Eastwood. Valli e os seus amigos (interpretados pelos próprios actores que os recriaram em palco nas várias produções da peça) eram putos de uma New Jersey de horizontes restritos de onde só se podia sair pela tropa, pela Mafia ou pelo rock’n’roll. O grupo procurou a quadratura do círculo de sair pelo rock (na versão “aceitável” do Brill Building, no período entre a domesticação de Elvis e a explosão dos Beatles) sem que isso implicasse perder a ligação ao bairro: Frankie e Bob Gaudio, o principal compositor, acreditavam no trabalho duro e no poder da música, Tommy de Vito, o “motor” que não desistiu enquanto o grupo não arrancou, nunca deixou de estar ligado ao submundo e ao dinheiro fácil. 
É a tensão entre estes “lados” que propulsiona a narrativa, e, no processo, espelha também a própria tensão que Eastwood imprime ao material, ao filmá-lo como um musical simultaneamente atípico e tradicional.
Jersey Boys recusa as convenções mais evidentes do género e usa a música puramente como pano de fundo, mas fá-lo procurando “encaixar” a história do grupo num convencionalíssimo arco narrativo de “ascensão e queda”. Essa tensão entre modernidade e classicismo, entre fugir à fórmula e render-se-lhe, é a mesma que tem estado no centro desta sucessão de “epílogos” ao corpo central da obra, e Eastwood volta a não conseguir resolvê-la a contento (talvez nunca o tenha realmente querido, é certo). Mas o que daqui sai é um filme que, sabendo que é impossível voltar ao musical “à antiga”, também não é capaz de fugir a essa nostalgia, e que apenas sublinha como Jersey Boys parece mais talhado à medida do Scorsese de Tudo Bons Rapazes ou do Casino do que do Eastwood de Bird ou Cartas de Iwo Jima.

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