Há 20 anos aconteceu uma coisa chamada Dummy

Um daqueles álbuns que marcam um antes e um depois, Dummy, obra inaugural dos Portishead, continua a ser o disco de cabeceira de muita boa gente. Agora em reedição celebrativa.

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Desde o álbum inaugural, os Portishead são a mistura do espírito de Beth Gibbons com o hip-hop de Geoff Barrow e a musicalidade de Adrian Utley

Foi há 20 anos. Duas décadas. No final de Agosto de 1994 era lançado o álbum Dummy. Inicialmente, apenas mil cópias. Depois, milhares delas. Uma surpresa, o sucesso. A influência sobre o que se seguiria. Um álbum que se tornou um clássico.

Agora, para celebrar a data, o álbum é reeditado à Portishead. Isto é, sem grandes alaridos, numa reedição em vinil de 180 gramas, envolvido num encarte desdobrável, mas sem material extra e “com as canções a manterem-se exactamente como foram gravadas originalmente”, fizeram questão de dizer à imprensa.

Única particularidade: as primeiras mil cópias vendidas eram em vinil azul. Depois dessas, em vinil negro. Cada exemplar inclui um cartão com código para que o álbum possa ser descarregado.

Tudo isto acontece quando o grupo anda em digressão – estiveram em Julho no festival Marés Vivas, em Gaia – e prepara, ao que parece, o quarto álbum. Até agora, apenas três álbuns, em 20 anos. O último foi Third (2008), o do meio é Portishead (1997) e o mais intemporal é Dummy (2004).

Como compreender o que se passou no início? Talvez começando por Grandmaster Flash, um dos pioneiros do hip-hop que transformou o gira-discos num instrumento de laboratório e o género num exercício de colagens de contornos estéticos. 

No início dos anos 1980, sucederam-se os exemplos de como o hip-hop podia ser um terreno livre, capaz de explorar mais a componente sonora do género e não tanto a lírica. Com a chegada do sampler, essa tendência aperfeiçoou-se. 

Foi a partir desse embrião que se viria a falar mais tarde de hip-hop abstracto, pós-hip-hop ou trip-hop, designações que tentavam dar conta de uma nova realidade, em que o hip-hop ainda surgia como base de operações, mas que ia muito mais além.

No contexto de editoras londrinas como a Mo’Wax ou a Ninja Tune, e até através de projectos japoneses como os excelentes Major Force, as abstracções hip-hop foram sendo exploradas nessa época. Mas a principal referência geográfica das movimentações pós-hip-hop acabou por ser a cidade de Bristol.  

O seu passado como porto do comércio de escravos foi determinante para a criação de uma paisagem humana mestiça. Ali, a influência do hip-hop americano era até mais pronunciada do que em Londres. Ao mesmo tempo, havia uma tradição cultural jamaicana muito enraizada e o funk parecia em sintonia com o punk, graças a grupos como os Pop Group e Rip Rig & Panic.

Foi nesse contexto que nasceu, na primeira metade dos anos 1980, o colectivo The Wild Bunch, do qual fizeram parte nomes como Daddy G e 3D (ambos dos Massive Attack), Tricky ou Nellee Hooper (dos Soul II Soul e produtor do álbum Debut, de Björk).

No final dos anos 1990, os The Wild Bunch separaram-se, nascendo a partir desse embrião os Soul II Soul e os Massive Attack. Os primeiros impuseram um tipo de sonoridade em que a soul ou o dub apareciam como a progressão natural do hip-hop, mas foram os segundos, através da estreia com Blue Lines (1991), que criaram uma obra fundadora. Nesse disco, os ingleses sintetizavam o que vinha de trás (hip-hop, soul, dub ou pós-punk) e projectavam o que se seguiria (canção electrónica, dança horizontal, hip-hop hipnótico e narcótico).

Se Blue Lines constituiu a sinopse perfeita de um tempo, o que se seguiria com os Portishead foi o requinte final, o atribuir de intensidade dramática a qualquer coisa que havia sido criada.

Quem esteve em estúdio com os Massive Attack na gravação de Blue Lines, embora apenas na condição de estagiário, foi Geoff Barrow, o principal arquitecto da sonoridade dos Portishead, que vivera toda a adolescência em Portishead, uma pequena povoação costeira, perto da foz do canal de Bristol.

A sua paixão era o hip-hop da velha escola. Em estúdio, com os Massive Attack, não participou nos processos de gravação, mas mostrou-se atento ao que ouvia, nomeadamente ao som de ritmos em câmara lenta e vozes desencantadas. Esse equilíbrio entre motivos do hip-hop e pop clássico, através do filtro do jazz ou das bandas-sonoras de filmes, levou-o para os Portishead, explorando as possibilidades emocionais das electrónicas.

Nas primeiras e raras entrevistas, Geoff Barrow disse logo ao que vinha: “Através dos Portishead procuro demonstrar que a música electrónica pode ter alma.” Para o ajudar encontrou o guitarrista Adrian Utley e a cantora Beth Gibbons. “Os Portishead tinham três cabeças”, haveria de dizer Barrow. “Eu era o elemento hip-hop, Adrian dominava a musicalidade e Beth o espírito. Queríamos ser tão rudes como o hip-hop, tão musicais como Ennio Morricone e tão emocionais como Billie Holiday.”

Eram três personalidades muito distintas. Numa entrevista a por ocasião do seu mais recente álbum, Geoff Barrow dizia-nos que “cada um tem as suas singularidades”, mas que isso nunca constituiu um problema. Descreveu Beth Gibbons como "a pessoa mais autêntica e honesta" que alguma vez conheceu. "É brutalmente honesta, com o que isso gera de fascínio e de surpresa. Não estamos habituados a lidar com pessoas assim no nosso dia-a-dia."

A verdade é que se ele queria criar música com densidade, dificilmente poderia ter encontrado duas almas tão imbuídas do mesmo propósito. E essas intenções foram sublimadas em Dummy, combinação de um novo tipo de formalismo e força emocional, na procura de uma realidade alternativa onde a existência fosse intensa, como num filme de Herzog. Nas canções dessa obra Beth Gibbons aproveitava a veemência instrumental como plataforma para reflexões cruas sobre os encontros e desencontros relacionais, resultando daí um blues melancólico.

O álbum acabou por constituir um inesperado sucesso. Principalmente para quem crescera a ouvir rock, foi um momento de descoberta de outras formas de operar. À sombra do legado dessa obra inaugural dos Portishead, e dos Massive Attack e de Tricky, foi surgindo uma série infindável de novas editoras, músicos e grupos (Lamb, Goldfrapp, Jay-Jay Johanson, Alpha, Morcheeba), inspirados pelos ritmos mais lânguidos de Bristol.

O pânico de qualquer editora

A influência desse disco voltou a fazer-se sentir nos últimos anos. De Burial aos The xx, de James Blake a FKA Twigs, são inúmeros os exemplos onde é possível reconhecer essa ascendência, quando não são os próprios músicos a assumi-la. 

Essa intemporalidade de Dummy não é difícil de discernir. É o som, claro. Uma soul petrificada. Mas é também a sinceridade desarmante e desolada que o todo emana, com uma voz que parece cantar como se estivesse fatalmente perdida na noite.

A gravidade emocional, a justeza da intensidade dramática, a vontade de atribuir o nome exacto às coisas, porque não pode ser de outra forma, continua a ser a marca que atravessa canções como Sour times, Wandering star, Numb, Glory box, Strangers ou I could be sweet.

O dispositivo rítmico em câmara lenta preparado por Geoff Barrow, preenchido pelas melodias de Adrian Utley e pela interpretação incisiva de Beth Gibbons, que apanharam toda a gente de surpresa há 20 anos, continua totalmente actual.

Na altura o grupo simbolizava o pânico de qualquer editora, pela relutância em participar em qualquer iniciativa de promoção. A cantora não dava entrevistas, argumentando que as letras eram muito pessoais e que não se sentiria à vontade em analisá-las com desconhecidos. Geoff Barrow também não gosta de entrevistas e digressões não são o seu passatempo preferido.

Isto para além de o grupo fazer longas travessias no deserto em termos criativos. Talvez esse quase silêncio também ajude a manter a áurea de Dummy. Depois desse disco existiram mais dois álbuns de originais, um álbum ao vivo e diversas colaborações e projectos a solo dos membros do grupo. Existiu também uma fase em que a sua música parecia servir de banda sonora preferencial para pequenos-almoços em hotéis demasiado estilizados, o que muito contrariava o grupo, apesar de não o poderem controlar.

Mas apesar da diversidade de cenários que todas essas movimentações foram provocando ao longo dos anos e até as diferentes maneiras como a sua música foi sendo percepcionada com o tempo, em todas elas reconhecemos os traços desse álbum inaugural. Os ambientes crepusculares, a forma como instrumentos clássicos combinam com tecnologia, o charme nocturno das canções e a introspecção dramática que assegura a densidade, tudo isso estava em Dummy. Continua a estar.

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