Perfume de mulher

Ciúme, desconfiança, atracção sexual, hipocrisia e deslealdade assumem bizarras proporções, sempre com um forte acento em obsessões que o autor se compraz em explorar até aos limites

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É possível que o isolamento concentracionário e a perseguição do desejo erótico que exacerbam as paixões em Segredo Ardente tenham influenciado o Thomas Mann de A Montanha Mágica

As literaturas do século XIX e da primeira metade do século XX estão saturadas de referências a comboios, a “máquina” por excelência, o monstro de aço e ferro que representou, para alguns, o triunfo do progresso da era industrial e, para outros, o sinistro reverso de um brutal avanço civilizacional. A alusão mais célebre, carregada de prenúncios de tragédia foi, obviamente, a de Tolstói em Anna Karenina, mas foram muitos os escritores que se fizeram valer da mesma metáfora. Em Segredo Ardente, do austríaco Stephen Zweig, é um comboio – com “um ronco surdo” das “suas carruagens negras” – que anuncia a acção, levando, até Semmering, um elegante e jovem aristocrata. A estância balnear de montanha está quase deserta - terminou a época alta - e o impetuoso dandy inicia imediatamente a “caça”, farejando uma qualquer conquista feminina que o ajude a passar o tempo. O autor explica, em poucas palavras, a ânsia do apelo erótico nesses homens “inflamados de paixão, ainda que não a do amante, mas a do jogador perigoso que procede a cálculos com frieza”. Assim, e depois de uma rápida avaliação dos escassos hóspedes, o barão – do qual nunca se sabe o nome – fixa a sua presa na pessoa de uma mulher madura (diríamos “balzaquiana”!) que se encontra no mesmo hotel com um filho de 12 anos, Edgar, um rapaz enfermiço e nervoso que lê Karl May, deambula pelos corredores e mete conversa com os empregados. Negligenciado pela mãe, uma senhora de modos irrepreensíveis e severos, é seduzido pela simpatia do homem insinuante que se apercebe da sua solidão e dele se serve para se aproximar – e conquistar – o objecto do seu anseio. Edgar fica deslumbrado com a atenção que lhe é concedida por um adulto tão encantador e conhecedor do “mundo” e deixa-se arrastar pela felicidade de um sentimento ilusório de amizade partilhada. O drama estala quando o rapaz se vê afastado pelos dois adultos, finalmente embrenhados numa relação clandestina e cujas manobras constituem, para ele, uma tremenda provação, uma vez que se sente incapaz de desvendar esse “segredo ardente”, cuja explicação lhe é constantemente sonegada. É-lhe difícil perder a atenção que anteriormente recebia por parte do barão e o ciúme que sente é acicatado pelo desinteresse da mãe, que faz uso de uma certa impaciência brutal para o tirar do caminho. Edgar, cuja frágil inocência é posta à prova enquanto persegue o desejo inabalável de deixar para trás a infância e de penetrar no mundo adulto, forma, com a mãe e o barão, um bizarro e perverso triângulo amoroso. Zweig imprime uma velocidade vertiginosa à acção – quase toda ela desenrolada a partir da visão deturpada e ingénua de Edgar – e faz uso do seu extraordinário dom de contista, ao criar um ambiente de suspense psicológico onde cabem os sentimentos mais complexos e as emoções mais exacerbadas. Ciúme, desconfiança, atracção sexual, hipocrisia e deslealdade assumem bizarras proporções, sempre com um forte acento em obsessões que o autor se compraz em explorar até aos limites. Não é por acaso que este longo conto, que remete para os meandros do complexo edipiano, surgiu na altura em que Freud, amigo pessoal do autor e tenaz influência na sua obra, preparava o seu estudo Sobre o Narcisismo. Uma Introdução, publicado em 1914, onde argumenta que “o amor próprio é o complemento da libido, em relação com o egoísmo do instinto da auto-preservação”. No entanto – e Zweig é perito em ambiguidades – o impulso predatório do barão não o inibe de sentir remorsos quando afasta Edgar o qual, embora seja um empecilho por demais caprichoso e astutamente manipulador, é-nos revelado como uma criança curiosa, inteligente e ansiosa, enquanto a mãe, cuja brusquidão cruel como trata o filho pode chocar certas mentes sensíveis, é apenas uma mulher que procura um último lampejo de satisfação erótica, de aventurosa conquista, numa vida desinteressante e acomodada. (Será conveniente lembrar que, em 1933, Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, proibiu uma adaptação cinematográfica desta história. No mesmo ano, os livros de Zweig foram queimados na praça pública.)

Stefan Zweig escreveu este Brennendes Geheimnis (publicado em 1911) quando a sua Viena natal era ainda um polo activo e florescente, com uma vibrante dinâmica artística. Oriundo de uma família judia liberal e abastada, fazia parte de uma elite que incluía Mahler, Schoenberg, Max Reinhardt, Gustav Klimt e Sigmund Freud, alguns dos intelectuais que reunia amiúde na sua magnífica mansão nos arredores de Salzburg e onde se respirava uma atmosfera de grande tolerância e ardor criativo. Com Thomas Mann e Arthur Schnitzler, dois dos seus amigos mais íntimos, partilhou temas e preocupações literárias. É possível que o isolamento concentracionário e a perseguição do desejo erótico que exacerbam as paixões em Segredo Ardente tenham influenciado Mann na composição de uma das suas obras-primas, A Montanha Mágica (1924); quanto ao escandaloso Schnitzler, exuberantemente caracterizado como pornógrafo desde a publicação (para os amigos) de Reigen, em 1900, a peça adaptada ao cinema por Max Ophuls em 1950 com o título La Ronde, tinha em comum com Zweig o gosto por situações carregadas de voracidade sexual e a livre e exaustiva exploração de tramas psicológicas – Freud disse que Schnitzler tinha chegado intuitivamente ao que ele descobrira cientificamente - mas não partilhava a simpatia pelos personagens que Zweig acabava sempre por demonstrar.

Mann e Zweig, ambos apaixonados pela língua alemã – embora muito diferentes no estilo – ambos cosmopolitas e de famílias cultas e abastadas, ambos obrigados a emigrar, viveram os terríveis acontecimentos da ascensão de Hitler, de uma forma distinta. Thomas Mann opôs-se frontalmente, escreveu e publicou violentos libelos contra o nazismo, enquanto Zweig, a quem repugnava qualquer atitude belicista – durante a Iª Grande Guerra tinha-se juntado a Romain Rolland e a outros pacifistas na Suíça onde lutou pela implantação de uma nova ordem a que chamaram “o internacionalismo intelectual” – com a sua habitual incapacidade para tomar partido ou ser assertivo, nunca o fez. Klaus Mann, filho de Thomas Mann, discernia “algo mórbido e iridescente, sedutor e seduzível, um charme “casanoviano” na persona do autor, que era marcadamente vienense” e essa “doçura” esquiva impedia-o de , como ele afirmou ambiguamente, “ levantar a voz contra a sua pátria”.

Zweig, o escritor das biografias mais célebres da sua época – Maria Antonieta, Mary Stuart, Fouché, Fernão de Magalhães, Erasmo de Roterdão, Balzac, etc. – escreveu também sobre a sua própria vida e sobre um universo que desaparecera para sempre. Estava perfeitamente ciente que a Europa, como espaço cosmopolita e fulgurante, moldado por uma cultura milenar e heterogénea, deixara de existir, tendo-se tornado num campo de barbárie onde não havia lugar para a tolerância mútua, para a celebração de ideais estéticos, para a curiosidade científica, para o fervor artístico ou para apetites eróticos que tinham feito parte intrínseca da sociedade vienense. Fiel ao seu perene impulso peripatético, Zweig foi colocando cada vez mais distância entre ele e a sua terra natal, instalando-se em Paris, Londres, Bath, Nova Iorque e finalmente em Petrópolis, nos arredores do Rio de Janeiro, onde acabou O Mundo de Ontem. Recordações de um Europeu e Novela de Xadrez. Mas quando soube que a suástica tinha sido hasteada na Torre Eiffel o seu desespero paralisou-o. Para quem, como ele, tinha viajado com prazer ao longo de toda a vida, o exílio revelou-se uma catástrofe, “já não uma situação escolhida por vontade própria mas sim uma fuga aos ferozes mastins.” Apesar do sucesso dos seus livros, da ausência de dificuldades financeiras e do amor de Lotte – a sua segunda e muito mais jovem mulher – Zweig, tal como Virginia Woolf, percebeu com demasiada clareza o que representava a ameaça nazi. Na véspera do dia 23 de Fevereiro de 1942, nesse Brasil que ele cunhara, num acesso de optimismo, como o “país do futuro”, ingeriu com Lotte uma dose maciça de veronal. Deitaram-se, serenamente abraçados, para nunca mais acordar.

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