As eleições no PS, a esquerda e a direita

Aquilo que é mais relevante a separa Costa de Seguro não é o posicionamento ideológico, mas antes a sua personalidade e a sua inscrição sociológica.

As páginas de opinião do PÚBLICO têm publicado alguns textos sobre a contenda eleitoral socialista cujo objectivo consiste em apresentar a candidatura de António Costa como correspondendo à esquerda do PS, ou com mais abertura à sua esquerda, e a campanha de António José Seguro como sendo mais de direita, ou até mais próxima do Governo em funções. Na minha opinião, a argumentação substantiva por detrás desta estratégia opinativa é frágil e, além do mais, tem a agravante de encobrir as diferenças relevantes entre os dois candidatos – que não são de natureza ideológica.

Em primeiro lugar, não parece muito convincente concluir que António Costa se posiciona mais à esquerda e Seguro à direita a partir de uma leitura dos documentos das duas campanhas. Os documentos de ambas as candidaturas inscrevem-se claramente na esquerda democrática e pouco mais há a dizer sobre diferenças ideológicas de fundo entre eles. Nas moções apresentadas, o estilo de Costa é mais intelectual e o de Seguro mais político, mas isso não os posiciona mais à esquerda ou mais à direita como pretendeu sugerir nestas páginas a minha ex-aluna e querida amiga Ana Rita Ferreira (no passado dia 22). Aliás, ela própria reconhece que a diferença substantiva entre os dois é ténue e, por isso mesmo, não se devia concluir que Costa tem um pensamento mais à esquerda simplesmente porque, como afirma, a sua moção refere explicitamente a necessidade de “corrigir as desigualdades sociais”. Aliás, esta ideia transformou-se num mantra de todos os partidos em Portugal, incluindo os de direita - que a afirmam mas não a praticam. Parece excessivo concluir daí o posicionamento de esquerda de António Costa, ou concluir o posicionamento de direita de Seguro a partir da falta dessa expressão na moção que apresenta (mas onde diz o mesmo por outras palavras, quando fala do Estado social, além de que o tema da desigualdade social é um dos pilares do chamado “Contrato de Confiança”).

Em segundo lugar, é igualmente pouco claro que o “lastro histórico” dos candidatos coloque Costa à esquerda e Seguro à direita, como sugeriu aqui o meu muito estimado colega e companheiro André Freire (no passado dia 27). Quando analisamos o que ambos os candidatos foram escrevendo e dizendo ao longo dos anos de oposição ao actual Governo não se nota grandes diferenças, como é sabido. No plano dos actos, recuando ao tempo em que o PS era Governo, a diferença fundamental consiste no facto de António Costa ter estado sempre ao lado de Sócrates, enquanto Seguro se demarcou do socratismo por diversas vezes. Ora, André Freire sempre defendeu, com grande coerência, que o PS de Sócrates era um partido que se tinha movido “em direcção à direita” e que se tinha transformado numa espécie de “partido do centro”, o que tornava a política de alianças à esquerda mais difícil ou mesmo impossível. Parece-me que esta crítica incluiria mais facilmente António Costa, que nunca deixou de apoiar Sócrates, do que António José Seguro, que dele se demarcou em momentos cruciais (e não pela direita).

Em terceiro lugar, o outro argumento de André Freire, sobre as propostas de reforma eleitoral dos dois candidatos, não tem a ver directamente com a distinção entre a esquerda e a direita, mas antes com a ideia de representação e a concepção do pluralismo político. Algumas propostas de Seguro, como a da redução do número de deputados, poderão não agradar à extrema-esquerda, mas também não agradam ao CDS e isso não faz deste um partido de esquerda. Note-se ainda que, em termos de alianças, Costa já se disse pronto a fazê-las com qualquer um, incluindo com o PSD, embora não “este PSD”, mas apenas aquele que sairá das próximas eleições e que ele considera que será liderado por Rui Rio (mas poderá não ser). Não creio que isto coloque Costa à esquerda, ou que a abertura para coligações também demonstrada por Seguro o coloque à direita de Costa.  

Na verdade, há uma quarta linha de argumentação que nem André Freire nem Ana Rita Ferreira desenvolvem e que compromete ainda mais a sua tentativa de acantonamento de Costa à esquerda e de Seguro à direita dentro do PS. Mais do que aquilo que os candidatos afirmam, são aqueles de que se fazem rodear que muitas vezes definem se eles representam a esquerda ou a direita. Ora, acontece que há muitas pessoas, quer conotadas com a esquerda, quer com a direita do PS, de um e do outro lado da contenda. Ou será que Luís Amado, um distinto apoiante de Costa e de muitas das política do actual Governo, se transformou agora num esquerdista radical? Será que Alberto Martins, referência da esquerda do PS e apoiante de sempre de Seguro se tornou agora num perigoso direitista? A questão é que a linha de corte entre apoiantes de Costa e apoiantes de Seguro tem muito mais a ver com outro tipo de amizades e solidariedades do que com a divisão esquerda/direita, como pretendem o André e a Rita.

Mas, do meu ponto de vista, aquilo que é mais relevante a separa Costa de Seguro não é o posicionamento ideológico – ambos estão claramente no campo do centro-esquerda ou da social-democracia europeia na sua versão actual, pós-terceira via – mas antes a sua personalidade e a sua inscrição sociológica.

Sem querer ressuscitar aqui o discurso do “sulista e elitista”, a verdade é que António Costa nasceu e viveu numa família privilegiada de Lisboa e tem o seu círculo de amigos entre um pequeno grupo que sempre tem mandado no partido e no país. Assim se explicam os apoios que recebeu da velha guarda do partido e da opinião publicada (incluindo cronistas de direita). Seguro é o inverso disso, um outsider que veio da província, onde a sua família continua a morar, e que nunca pertenceu a círculos especiais de poder e privilégio. Daí ser rejeitado pelas franjas mais elitistas do partido e tratado com invulgar dureza pela opinião publicada. Os seus apoios estão sobretudo nas bases do partido, nos sindicalistas e nos cidadãos anónimos e sem relações privilegiadas.

Devido à sua experiência pessoal e aos círculos em que se move, Costa tem um discurso mais intelectualizado do que Seguro e é precisamente essa tónica discursiva que André Freire e Ana Rita Ferreira confundem como sendo mais de esquerda, por ser mais doutrinária. Por seu turno, Seguro tem um discurso mais político e pragmático mas que, em boa verdade, está mais próximo das preocupações dos trabalhadores e do povo com as quais a esquerda, até mesmo a mais intelectual, se deveria identificar. Ou não é assim?

Professor universitário e apoiante de António José Seguro às primárias do PS

Sugerir correcção
Comentar