Como crescer apesar da austeridade

Os economistas José da Silva Lopes, Manuela Morgado, Mário Valadas e Cordeiro Baptista defendem que Portugal pode e deve crescer, apesar da austeridade. E têm uma certeza: o país não deve sair do euro. Primeiro texto de uma série sempre escrita a quatro.

Foto
Fábrica da Autoeuropa Daniel Rocha

— As pessoas perceberam que é inevitável apertar o cinto. Claro que não é indiferente o modo como se aperta. O desafio é encontrarem-se soluções concretas que contribuam de forma efectiva para se conseguir crescimento económico mais rápido.

—  Infelizmente, abundam diagnósticos e convicções sobre o que se não deve fazer, mas propostas pela positiva e viáveis, são poucas. E se aceitássemos o desafio?

 Contribuir para a discussão do onde e do como induzir crescimento económico no contexto concreto de um país real, submetido a restrições financeiras draconianas e inamovíveis em prazo curto, foi o desafio que se colocou, mais ou menos nestes termos, num almoço informal entre amigos. E assim fizemos. Enquanto grupo de trabalho, temos bem consciente que a nossa análise é condicionada por escolhas ideológicas que se tornam evidentes para quem nos ler. Convém explicitar quatro dessas escolhas — uma plataforma comum de pensamento que condiciona as opções tomadas e as propostas consequentes.

As escolhas de base
Em primeiro lugar, a ideia de construir um país menos desigual e com maior igualdade de oportunidades. Muito para além de se considerar a sua importância instrumental para se atingirem objectivos noutros domínios — oportunidades mais generalizadas permitem o aproveitamento em bem comum de maior número de capacidades potenciais nos diversos domínios das ciências e das artes — a ideia exprime uma importante vertente do posicionamento que assumimos.

Em segundo lugar, a convicção de que o Estado deve continuar a desempenhar um papel fundamental no funcionamento da economia e no progresso social do país. O que interessa não é, na maior parte dos casos, que haja menos Estado, embora se deva admitir que muitas vezes a transferência de algumas actividades do sector público para o sector de mercado pode trazer vantagens económicas e até sociais. O que verdadeiramente interessa é melhorar o Estado, procurando corrigir com vigor as suas falhas e imperfeições fundamentais (deficiente capacidade e ineficiência de numerosos serviços e instituições do sector público; demasiado peso dos grupos de interesse nas decisões do sector público, não só os grandes grupos económicos, mas também uma grande variedade de outras naturezas; influência de motivações dominantemente partidárias, não correspondentes a respostas racionais para os objectivos de interesse nacional enunciados pelos próprios partidos; falta de transparência nas decisões públicas, contribuindo para um eleitorado mal informado e riscos de populismo, etc.). Corrigir esta situação é tarefa muito difícil mesmo em períodos relativamente longos: faltam consensos suficientemente generalizados sobre as soluções a adoptar; há oposições poderosas a muitas das reformas mais necessárias; escasseiam capacidades técnicas e meios financeiros para arquitectar e pôr em prática mesmo as transformações mais urgentes. Contudo, e apesar das dificuldades, há que reforçar muito o empenhamento na luta contra as deficiências do Sector Público, uma vez que os efeitos negativos das chamadas falhas de mercado são frequentemente devastadores e não têm sido adequadamente combatidos (comportamentos fraudulentos de empresas e seus donos ou gestores, fragilidade do combate a práticas restritivas da concorrência, obtenção de vantagens ilegítimas por influência sobre o poder político e outros com resultados incompatíveis com objectivos de solidariedade económica e social).

Em terceiro, a convicção de que a democracia, no que tem de comum aos sistemas prevalecentes nos países com maior nível de desenvolvimento, é o único sistema capaz de promover a melhoria das condições de vida das pessoas com paz, liberdade e respeito pela dignidade humana. Parecendo consensual, não é demais reforçar a adesão a um valor frequentemente relegado para um plano menor por quem sofre os efeitos das crises económicas.

Em quarto lugar, parte-se da ideia de que sem crescimento económico, nada feito. O crescimento económico é condicionante do aumento de bem-estar para camadas progressivamente mais alargadas de pessoas, da remoção de restrições que reduzem a sua capacidade de realização como cidadãos nas suas várias vertentes, da diminuição do sofrimento individual. Sem crescimento económico não há cultura, não há saúde, não há educação, não há segurança, embora não seja para isso, claro está, condição suficiente. Sem ele também não haverá possibilidade de reduzir substancialmente, ainda que com dificuldades económicas e sociais bem mais duras do que as dos últimos anos, os problemas do desequilíbrio orçamental, do desequilíbrio externo, da dívida pública e do endividamento perante o exterior.

Austeridade
Claro que não pode ser ignorada a questão de como ir removendo as restrições impostas pelo desmesurado endividamento do Estado, das empresas e das famílias, dentro do país e perante o exterior. Trata-se mesmo do problema político sobre o qual, compreensivelmente, os portugueses mais polemizam: cada medida impacta inevitavelmente, e de maneira muito desigual, nas condições de vida de cada um. Em consequência, os partidos utilizam intensamente o tema no seu combate político. Não é, contudo, nosso propósito contribuir para esse debate. Reconhecemos que as alternativas não são equivalentes, temos as nossas preferências. Sublinhamos apenas que consideramos inviável qualquer estratégia de crescimento económico que ignore ou pressuponha a redução significativa, dentro de um período curto, das restrições em que nos encontramos. As escolhas não devem ser conduzidas no domínio da fantasia, na ilusão de que o rápido fim da austeridade é possível sem consequências nocivas a curto e médio prazo no bem-estar das pessoas. Vender sonhos pode sossegar consciências, mobilizar vontades mas conduzirá rapidamente a desilusões e frustrações muito perigosas, eventualmente destruidoras da confiança em soluções democráticas.

 A questão não é “crescimento ou austeridade”; a questão é “como crescer apesar da austeridade”, não sendo possível removê-la a curto prazo.

Mais de 15 anos de um ambiente com taxas de juro baixíssimas, com largueza na concessão de crédito e volumosos investimentos públicos, resultaram em déficits e dívidas insustentáveis em todos os sectores da sociedade portuguesa e num crescimento baixíssimo que não aproximou o nosso rendimento per capita da média europeia.

Não podemos alimentar a ilusão de que “mais do mesmo” reverte a situação e nos conduz ao almejado crescimento. Temos de encontrar soluções, contribuir com ideias e propostas, especialmente aqueles cujas formação e prática lhes dêem acrescidas competências nas áreas onde essas soluções são exigidas.

Sector transacionável
É irrealista e perigoso pretender que o crescimento se pode conseguir essencialmente pela via da expansão da procura interna. Por ela seríamos rapidamente conduzidos a maiores défices da balança externa, como a experiência portuguesa desde meados dos anos 90 abundantemente tem demonstrado. Torna-se assim necessário que as políticas públicas de indução do crescimento se dirijam prioritariamente para a melhoria da competitividade das empresas que produzem os bens transacionáveis — bens e serviços que possam ser exportados ou substituir importações, sujeitos à concorrência internacional. Por economia de linguagem designaremos o conjunto dessas empresas por sector transacionável.

Deve-se avançar tão longe quanto possível em políticas efectivas de discriminação a favor do sector transacionável, dentro de limites consistentes com as regras da concorrência do mercado interno da UE. As discriminações que aqui se advogam mais não seriam que meios de compensar as condições mais favoráveis de que o sector não transacionável tem beneficiado desde que Portugal se integrou na zona euro.

As políticas orientadas para promover mais o desenvolvimento do sector transacionável terão em regra de ser baseadas nas chamadas reformas estruturais, muitas das quais foram inscritas como exigências do acordo com a troika. Mas o Governo só muito parcialmente as tem concretizado. E na escolha e conteúdo das reformas introduzidas tem havido excessivo peso de opções ideológicas e demasiadas cedências a grupos de interesses.

 Para se conseguir intensificar a introdução das necessárias reformas estruturais, com equidade e eficiência será de recomendar:

— a elaboração de Programas Anuais de Reformas Estruturais, com indicação dos objectivos para cada uma delas e dos prazos previstos para o seu estudo, a sua discussão e a sua concretização, tudo muito distante do que o Governo tem elaborado;

— a criação de um Conselho Consultivo para as Reformas Estruturais, encarregado de dar parecer sobre os Programas Anuais e sobre as propostas mais relevantes de Reformas Estruturais concretas, antes de estas serem submetidas à decisão final dos órgãos do poder político.

 Este Conselho teria membros permanentes, nomeados por períodos de 2 ou 3 anos, e membros ocasionais que participassem nas discussões sobre matérias em que tivessem reconhecida competência. Entre os membros haveria obrigatoriamente quadros reconhecidamente qualificados da Administração Pública e de outros organismos do sector público e individualidades independentes, particularmente com experiência empresarial, alguns vindos das universidades, com demonstrada capacidade para contribuírem significativamente para os trabalhos do Conselho.

As medidas
É longa a lista das medidas que preconizamos conducentes à aceleração do crescimento económico e que carecem ser analisadas e debatidas. Escolhemos algumas que consideramos relevantes a agrupamo-las por áreas: prioridade nos apoios ao sector transacionável, transportes, energia, investimentos e incentivos comunitários, valores e ensino, pensões, formação profissional e inovação, justiça, intervenções sectoriais específicas, administração pública, turismo. Outras poderão vir a ser acrescentadas, dependendo da avaliação da sua oportunidade.

 Nenhuma dessas medidas contempla cenários do tipo “não pagamos” ou “saímos do euro”. Pode até acontecer que Portugal tenha de se confrontar com a inevitabilidade desses cenários, mesmo que não os desejemos; mas pensamos que permitirão apenas um alívio transitório, que implicam consequências devastadoras nas condições de vida dos mais desfavorecidos e a que se furtam os que mais podem, que retardam uma desejável aproximação aos padrões culturais europeus, que o eventual crescimento delas decorrente será fraco e efémero.

 As políticas da União Europeia deveriam ser reorientadas para facilitar o crescimento, evitando, em particular, que a dívida condicione demasiado o respectivo processo; mas, também, que a nossa capacidade para influenciar nesse sentido é reduzida, pelo que as medidas propostas vão essencialmente no sentido de aproveitar as oportunidades que a nossa integração proporcionam: um mercado amplo, permitindo a adopção de processos produtivos eficientes e competitivos, e a adequada afectação dos diversos tipos de fundos a que podemos aceder, entre outras.

As contribuições, a discussão
Tudo o que se propõe destina-se a provocar reflexão. Desejamos que, para além da crítica ao que se escreveu, surjam da sua leitura novas propostas que passem o crivo da possibilidade, não dependam de pressupostos irrealistas sobre o comportamento de agentes internos e externos.

 Muito dos textos decorrem de contribuições de um grande número de pessoas que tiveram a amabilidade de nos proporcionar encontros longos onde expuseram ideias e as confrontaram com as nossas, contaram a sua experiência, nos alertaram para erros de percepção. Foram gestores de empresas nacionais e multinacionais, macroeconomistas, especialistas em vários sectores, estrangeiros que conhecem o país e gostam dele. Mas a responsabilidade da escrita é toda nossa, até porque em muitos casos nos afastámos das opiniões que recebemos.

 Entre os que até agora nos ajudaram mencionamos (por ordem cronológica): Willhelm Kemper, José Honório, José Cardoso da Silva, Paulo Pereira da Silva, Carlos Melo Ribeiro, Luis Palha da Silva, António Melo Pires, António Saraiva, Filipe de Jesus Pinhal, João de Carvalho, Leonor Coutinho, João Ferreira do Amaral, Félix Ribeiro, Teolinda Portela, Maria João Rodrigues, Fernando Medina, Rui Cartaxo, Seabra Lopes, Manuel Baganha, Jorge Bravo. Mencionamos ainda a Ordem dos Economistas a quem, na pessoa do seu Bastonário, agradecemos o encorajamento e o apoio. Os textos ficarão também disponíveis no seu site na internet.

Discussão com os leitores
Esta série inclui a possibilidade de receber contribuições dos leitores, espontâneas ou induzidas pelos textos. Essa interactividade far-se-á no online do PÚBLICO. Procuraremos, dentro das nossas capacidades e disponibilidades, comentar o que nos for dirigido. A selecção será da nossa inteira responsabilidade.

A seguir: Dívida Externa

 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários