Os casos do caso com 188 sessões de julgamento

As proporções e complexidade do processo, com 36 arguidos e mais de 300 testemunhas, fizeram com que o julgamento se transformasse num caso histórico e quase impenetrável.

Serão muito poucos os portugueses que não se perderam na tão falada teia de corrupção e tráfico de influências, burla, furto do caso Face Oculta. As proporções e complexidade do processo - quase duas centenas de sessões de julgamento para ouvir mais de 300 testemunhas ao longo de quase três anos numa sala de tribunal onde o país via a entrar ex-ministros e ex-administradores de empresas públicas e outras figuras públicas – fizeram com que se transformasse num caso tão histórico como quase impenetrável. Não há só um momento marcante deste caso que deu que falar antes do julgamento, durante e que promete continuar. Há vários casos neste caso.

A maioria dos portugueses sabe que o processo envolve os conhecidos nomes de Armando Vara, José Penedos (socialista e antigo presidente da REN) e o seu filho Paulo Penedos (advogado) e ainda de um “sucateiro” de Ovar, chamado Manuel Godinho. Que o nome de José Sócrates também foi metido ao barulho por causa de umas escutas feitas pela Polícia Judiciária mas que este nunca entrou na sala de audiências. Sabe também que o Face Oculta é um processo sobre corrupção, tráfico de influências, luvas, cunhas e outros favores, burla, compromissos e comprometidos. Todos sabem, ainda, que o Face Oculta não acabou com a sentença ditada ontem pelo colectivo de juízes de Aveiro.

Entre tanta gente, tantas declarações, recursos e acusações, sessões ao longo de muito tempo, somos bem capazes de ter perdido o fio à meada. Aqui ficam alguns dos pontos fortes desta longa e mediática história.  

A logística
Se por muitos outros pormenores e personagens este caso fica na história, ficará também certamente como um exemplo do bom funcionamento da justiça, em termos logísticos. O processo foi expedito. Passado pouco mais de um ano do início das investigações, iniciou-se o julgamento numa sala remodelada (que custou 80 mil euros) para receber os 36 arguidos. O julgamento foi rápido. Quase três anos para um processo com 32 arguidos, quase 400 testemunhas e quase 200 sessões não é muito tempo.

Desta vez, não houve a sombra da ameaça da prescrição. Houve outras, sim, processuais, formais. Para que não fosse necessário repetir o julgamento, a juíza do colectivo assinou um termo de responsabilidade num hospital, saiu e assistiu (doente) a uma sessão durante uma manhã, evitando que o julgamento voltasse ao início por terem passado mais de 30 dias sem sessões. Nove arguidos foram condenados a pagar uma multa de 400 euros por terem apresentado um requerimento ao juiz que este considerou que tinha como objectivo atrasar o julgamento. Tudo se fez para que a justiça não fosse adiada.

Até mesmo as operações de investigação iniciadas em 2008 foram feitas sem sobressalto ou jornalistas à perna com muitas buscas realizadas de forma discreta pelas autoridades a empresas públicas e que só algum tempo depois de terem acontecido é que vieram a público. É em Outubro de 2009 que a mega-operação de buscas é notícia em todo o lado e que o país fica a conhecer o empresário Manuel José Godinho, então com 54 anos, que chegou a estar preso preventivamente durante mais de um ano. Nem dois anos depois começava o julgamento.

 As escutas
Alguns dos arguidos deste processo foram alvo de escutas pela Judiciária. Muitas foram ouvidas em tribunal, percebendo-se que nelas se usava linguagem cifrada. Onde se ouvia 25 mil quilómetros, por exemplo, estava de facto a falar-se em 25 mil euros. Em Novembro de 2009 o então presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, mandou destruir as conversas entre Armando Vara e José Sócrates, ouvidas pela PJ durante a fase de investigação. Entendeu que, nos termos da lei, o chefe do Governo não poderia ter sido alvo de escutas sem a sua autorização. Porém, José Sócrates foi “apanhado” em conversas e mensagens escritas de telemóvel trocadas com Armando Vara. O alvo de escutas era Armando Vara, não José Sócrates. Ainda assim, o então procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e Noronha de Nascimento – que ouviram as 11 conversas entre Armando Vara e José Sócrates - consideraram que as escutas não tinham qualquer relevância. O procurador do Ministério Público, Marques Vidal, discordou. Segundo explicou na altura, as conversas tinham relevância, sim. Não directamente para o processo Face Oculta. O que ouviu levou-o a considerar que existia um plano de José Sócrates para controlar a comunicação social e admitiu que podia estar perante um crime de atentado ao Estado de Direito. Tese que foi apoiada pelo juiz de instrução criminal de Ovar que interrogou os arguidos.

Ricardo Sá Fernandes, advogado de Paulo Penedos, acusou Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento de terem praticado “actos nulos” e contestou várias vezes a destruição destas conversas, alegando que seriam importantes para a defesa do seu cliente. Ontem voltou a fazê-lo. No intervalo da leitura do acórdão (com 2781 páginas), Ricardo Sá Fernandes considerou que a decisão de destruição das escutas “inquinou todo o processo” e que a questão "está longe de estar terminada". Minutos antes, na sala de audiências, os juízes rejeitaram declarar qualquer nulidade, considerando que a destruição das gravações “em nada prejudica a defesa de Paulo Penedos”. A parte das escutas que foi transcrita para papel ficou num cofre do tribunal. A destruição das escutas está marcada para segunda-feira.

Julgamento
Impossível resumir 188 sessões realizadas ao longo de quase três anos. Como na maioria dos casos que chegam a tribunal, o arranque do julgamento e as alegações finais foram os momentos que mereceram mais atenção. Pelo meio, houve alguns episódios, mais ou menos decisivos para a história, a destacar. O recurso do procurador do Ministério Público, Marques Vidal, ao PowerPoint para apresentar todos os dados da acusação no primeiro dia do julgamento, a 8 de Novembro de 2011, não foi certamente determinante mas mereceu lugar no título de algumas notícias que assinalaram o arranque do megaprocesso. E a história do robalo? Mais um facto nada decisivo, mas muito falado. Armando Vara interrogado no tribunal disse nunca ter recebido qualquer presente de Manuel Godinho. Excepto, disse, “uns robalos”. Mais, o antigo ministro terá ainda acrescentado que deu, em troca, umas alheiras a Godinho.

O silêncio inicial de Namércio Cunha, acusado de associação criminosa e corrupção e antigo “ braço direito” de Manuel Godinho, prometia dificultar a prova da acusação relativamente a alguns arguidos. Namércio Cunha acabou por anunciar a 31 de Janeiro de 2012 que iria prestar declarações. Uma reviravolta no Face Oculta. Assumiu a figura de “arrependido” (o único arrependido no processo) e resolveu colaborar com a justiça. Foi um mero “pau mandado”, disse nos depoimentos que implicaram José Penedos e Armando Vara. Ontem foi condenado a uma pena de 18 meses suspensa.

Do envolvimento de pai e filho - concretamente José e Paulo Penedos – também surgiram algumas surpresas. José Penedos, presidente da REN, afirmou em julgamento que não sabia o que o filho dizia e prometia ao empresário do sector de sucatas. Paulo Penedos confirmou e admitiu ter usado de forma abusiva o nome do pai apenas para tranquilizar o empresário Manuel Godinho que estava preocupado com a falta de trabalho na sua empresa. Porém, as escutas das conversas entre pai e filho mostram algo diferente e terão sido fulcrais para comprometer o antigo presidente da REN. Ontem, Paulo Penedos foi condenado a quatro anos de prisão efectiva, e o pai, José Penedos, a cinco anos de prisão efectiva

Um dos nomes conhecidos que constam deste processo é também o do antigo ministro Mário Lino. Em meados de 2012, a ex-secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino, reafirma, num depoimento escrito aos juízes que estão a julgar o processo, que o antigo ministro Mário Lino lhe disse que as empresas de Manuel Godinho eram “amigas do PS” e que “havia pessoas importantes no partido muito preocupadas com o comportamento inflexível do [Luis] Pardal”, então presidente da Refer. Mário Lino desmentiu. Antes, o procurador Marques Vidal requereu que fosse extraída uma certidão para instaurar um processo-crime contra o ex-ministro Mário Lino por alegada falsidade de testemunho no processo, um crime punível com prisão até cinco anos. O procurador terá encontrado divergências no testemunho de Mário Lino sobre o teor da conversa que manteve com o empresário Manuel Godinho no seu gabinete.

As alegações finais do Face Oculta começaram no dia 20 de Fevereiro de 2014. O Ministério Público pede penas de prisão efectivas para os arguidos Armando Vara e José Penedos e uma pena não inferior a 16 anos para o principal arguido, Manuel Godinho, acusado de 60 crimes, incluindo associação criminosa, corrupção, tráfico de influência, furto qualificado, burla, falsificação. E assim foi. 

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