Pôr almoço na mesa é como gerir uma empresa

A história de amor dos Figueira começou com um namoro de adeus em Angola. Vieram depois do 25 de Abril. Deixaram lá tudo. Ao domingo juntam as filhas e netos ao almoço. Quinta reportagem da série

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Não é exagero dizer que Joaquim e Amélia Figueira se conhecem desde sempre. No início dos anos 1950 estes dois alentejanos partiram no mesmo barco em direcção a Angola. Ele tinha 11 anos, ela sete. A bordo iam “26 famílias” portuguesas. Ficaram a viver na mesma aldeia, Santa Comba, “uns 400 quilómetros de Luanda”. A porta de casa de Amélia era o número 12, a de Joaquim o 21, uma capicua. Ele tem hoje 73 anos, ela 69.

Começaram a namorar um “namorar de adeus”, “às escondidas”. “Não é como agora. Para me dar um beijinho custou caro”, conta Amélia a rir numa manhã de domingo, sentada numa cadeira à frente do seu monte em Foros da Fonte Seca (Redondo). Tinha então 12 anos, ficava à janela e dizia adeus a Joaquim, que lhe acenava da estrada. E quando Joaquim pediu autorização ao sogro para namorar Amélia, ouviu: “‘Sabes qual é o ditado antigo? Disse o pisco para a cotovia: ‘Pôs-se o Sol, acabou-se o dia’.” Ou seja, namoro sim, mas de noite nunca. “Não havia água canalizada, eu ia lavar à fonte e ele ia ter comigo”, lembra Amélia. O primeiro beijo veio muito tempo depois, tinham uns 20 anos.

Ao fim de quase 50 anos casados – têm que fazer contas de cabeça, não sabem de cor –, ainda estão juntos. E todos os domingos recebem as filhas, os genros e os netos que vivem perto. Elsa, 44 anos, e Carla, 37 anos, já ouviram várias vezes a história dos pais que vieram de África a seguir ao 25 de Abril, como os quase 500 mil retornados para que apontam as estimativas.

O regresso da família foi traumático, e isso está nos factos que relatam e no tom de voz mais pesado que usam para falar do passado e dizer frases como a que diz Joaquim: “O melhor da minha vida ficou lá”. Joaquim até se comove quando lembra o episódio do emblema do Benfica em louça, um presente de casamento, que no aeroporto não o deixaram trazer e que ele então partiu de propósito. Para trás, ficou gado, casa, bens, carros, tractores, uma mercearia. Conseguiram trazer “nada”, diz Amélia, acentuando as sílabas do “nada”.

Vieram à pressa, mas ainda tiveram tempo de abrir uma portinhola para os mais de 300 porcos fugirem e não ficarem fechados sem comer. Até então, nunca lhes tinha passado pela cabeça sair de Angola. “Foi de repente”, conta Joaquim. “Começaram a dizer: os terroristas vêm aí”, lembra Amélia. Meteram-se numa carrinha com mais duas ou três dezenas de pessoas em direcção a Luanda, mas não havia bilhetes de avião, as pessoas amontoavam-se para entrar. Uma pessoa conhecida ainda agarrou em Elsa, na escada do avião, e levou-a para dentro. Fecharam a porta, “com a menina lá dentro, eu cá fora com o meu marido”, conta Amélia. “Dei gritos, bati naquela porta daquele avião. O avião cheiinho, cheiinho. Anunciavam que quem era de Luanda que devia descer, que o avião assim não levantava. Ninguém queria sair. Mas lá começaram a sair. E depois conseguimos entrar e vir até Lisboa.”

Em Lisboa ficariam numa pensão, mas por pouco tempo. Seguiram para o Redondo para refazer a vida do zero. Ela passou 24 anos a cozinhar pastéis para vender para fora, ele 21 como contínuo na escola secundária. Agora estão reformados, compraram o monte há sete anos, e dedicam-se à agricultura. Nos cerca de dois hectares criam galinhas (vendem os ovos), têm uma horta, ovelhas e borregos. A filha Elsa lembra-se pouco dos seis anos que lá viveu. “Lembro-me do alpendre e do convívio de muita gente”, diz.

As irmãs e irmãos de Joaquim, oito ao todo, saíram de Angola e espalharam-se pelo mundo: Estados Unidos, Inglaterra, Suíça… Amélia tem irmãos em Portugal. No Alentejo, os dois foram duas vezes a concentrações de retornados, “mas a gente já não os conhece”, confessam. E da comida angolana as influências são poucas, não é costume cozinharem nada além do churrasco e da funjada (espécie de puré de farinha de milho), e mesmo assim é raro.

Cozinhar é de manhã

A ementa de hoje é bem alentejana: gaspacho (que não é batido), com carapaus fritos. O almoço é preparado na cozinha, que fica num módulo separado do resto da casa principal – casa branca, com faixa amarela, tipicamente alentejana.

Atravessamos o pátio, e entramos na sala de jantar, fresca apesar do calor. Desde há mais de 20 anos que Elsa, tesoureira, e Fernando Félix, agricultor, se casaram que vêm almoçar a casa dos pais ao domingo, é “um dia em que estamos realmente todos juntos à mesa, a conversar”. Hoje, porque está de férias longe dali, o filho David de 23 anos não veio. David licenciou-se em Turismo, está a fazer um mestrado, mas sabe que em Redondo a saída profissional é difícil, apesar de gostar de ali viver, contam os pais. “Aqui os empregos é mais a agricultura”, comenta o avô Joaquim. 

O almoço é sempre feito por Amélia, mas a matriarca confessa que não gosta de cozinhar (depois de provado o gaspacho e os carapaus, ninguém diria). Dá trabalho fazer, mas dá ainda mais pensar no que fazer, até porque depois cada filho e neto tem os seus gostos. Normalmente, quando as filhas chegam, pelas 13h, já está tudo feito (a terceira filha, Paula, vive em Pamplona, Espanha, com outra neta). Amélia gosta de cozinhar pela manhã, porque à tarde já não há energia. A família costuma ficar depois para a conversa.

Neste domingo de Agosto passa das 13h e chega Carla vinda da missa, com o marido Joaquim Saldanha, e o filho Zé Pedro, oito anos. Gestora de uma empresa agrícola, e formadora, Carla é quem trata das burocracias dos pais, quem verifica as cartas que vão chegando. Tem uma filha, Beatriz, de 20 anos (que também está de férias e não veio): “Dizem que são irmãs”, brinca o cunhado Fernando. “Aconteceu”, explica ela. “Com 17 anos uma gravidez não é fácil, mas superou-se.”

Carla é uma entusiasta do convívio familiar “importante para nos vermos, conversarmos, falar, perceber o que se passa na vida de um e na vida de outro”, comenta. “Isto é Alentejo mas temos a nossa azáfama mais pequenina!” E é importante também para os “pais não envelhecerem”: “É bom haver esta preocupação da família. Eles são a matriarca e o patriarca, têm que continuar a fomentar e nós a cumprir a nossa parte que é vir.” Ou seja, os encontros dominicais mantêm-nos activos e vivos. 

Na mesa está o gaspacho numa tijela de barro, pão, carapaus. Carla senta-se sempre no mesmo lugar, ao lado da mãe. “Normalmente os mais novos ficam na ponta porque comem e vão-se embora”, comentam.

Apesar de ter nascido em Portugal, a mais nova das filhas tem bem presente na memória as histórias de Angola. Lembra-se de ouvir a mãe contar que andava de carro, visualiza-a com mais autonomia. “Deixou de ser activa. Não a conheci na altura mas sei que ficou diferente. É uma excelente mãe, uma excelente avó, mas ficou triste.”

Amélia concorda, a sorrir. De resto ri bastante com as suas piadas e com as dos outros. Ouve a filha Carla com atenção. Que se descreve a si própria como a mais autónoma das três filhas. O pai diz que sim com a cabeça e acrescenta que é a “mais decidida, a mais sabida”. A mãe acha que “são todas” autónomas. E Elsa confessa que qualquer dúvida que tenha, ela, a mais velha, telefona a Carla “para ela ficar a par dos acontecimentos”. Carla acha que a mãe a descreve como a mais desligada. “Se calhar a experiência que tive, o facto de ter sido mãe aos 17 anos ajudou-me a ser diferente, não é? Estou sempre a procurar. E depois não sou funcionária pública!”

Começou a trabalhar aos 18 anos, estudou em horário laboral em Évora porque não havia curso pós-laboral, portanto “tinha que fazer horas a mais” no trabalho. Mesmo assim, levou oito anos a tirar uma licenciatura de quatro anos, “sempre com o apoio” dos “pais”. “A minha mãe é que ia buscar a Bia (Beatriz) à escola”, lembra. “Ando sempre muito a girar”, diz a rir, “e isso deu-me mais autonomia, traquejo. Não sou de estar parada. Dou formação, trabalho na empresa agrícola, tenho os clientes particulares, faço seguros…Não tenho horários para entrar, nem para sair, se tiver que ir ao escritório agora vou.” 

É catequista e também a única católica praticante na família. Explica que a religião é essencial e lhe transmite “principalmente calma e algum poder de reflexão”. “Ando todo o dia nesta azáfama, mas depois consigo acalmar e pensar um bocadinho nos ensinamentos de Jesus Cristo.”

Agora à mesa, Amélia agarra no neto Zé Pedro. Dá-lhe beijos: “Anda cá meu menino”. Ele refila com barulhos e diz: “Já estou zonzo.”

Há quem tenha repetido o gaspacho umas quatro vezes, mas ainda há espaço para o pudim de ovos do campo. “Dou formação a todo o tipo de pessoas, e uso sempre os exemplos da família”, explica Carla. “A minha mãe não se apercebe mas tudo o que faz aqui para pôr a comida na mesa é uma coordenação de recursos humanos e financeiros que é o que forma as empresas.”

Antes de a família pegar no carro e seguir para o café no Redondo, Carla enche o tupperware com o arroz de frango, ao qual chamam arroz tostado. Este é outro hábito que Carla tem, e a mãe já cozinha a contar com isso: levar uma “marmita” com os restos. A comida de Amélia tem um sabor único, e irreproduzível. Há que prolongá-lo. 

 

Receitas

Gaspacho à alentejana

 

(Para umas 10 pessoas)

Cortar aos cubos muito pequenos dois pepinos grandes, sete a oito tomates, um pimento, duas cebolas, oito dentes de alho. Colocar tudo numa tijela de barro. Juntar vinagre, água gelada, sal. Antes de servir, juntar pedaços de pão do dia anterior. Acompanhar com carapaus fritos, passados por farinha.   

 

Pudim

Um litro de leite cozido (levanta fervura, dois minutos); 12 ovos e 20 colheres de açúcar. Mexe-se com a batedeira, junta-se o caramelo no fim da forma, leva-se ao forno em banho-maria durante uns 40 minutos.

 

 

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