Documentário? Ficção? Ou a magia do cinema?

Mais importante do que tentar catalogar ou colocar na prateleira do género a que o filme pertence é vê-lo como a obra de arte que é em si

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Lisandro M. Enrique/Flickr

Um amigo realizador perguntou-me uma vez, após visionar uma curta-metragem sua, quais os momentos que eu considerei ficção e quais seriam pura realidade no seu documentário.

Este exercício de estrinçar o filme encaminhou o meu raciocínio para a contaminação dos géneros cinematográficos e a sua importância para o cinema.

O cinema, como qualquer arte, não é estanque nem hermético. O cineasta não se rege por categorias nem compartimentos. Não realiza para pertencer a um género. Apenas decide partilhar a sua visão através das câmaras. E será essa visão que abalará os espetadores, que os fará questionar, emocionar e irritar. Em suma, a magia do cinema.

Apresentarei apenas alguns exemplos de diferentes “contaminações”, uma espécie de prelúdio a investigações futuras.

Se pensarmos em “Nanook, o Esquimó” de Flaherty ou “In The Land of the Head Hunters”, de Edward S. Curtis, somos automaticamente assolados pela questão: é documentário ou ficção? As vicissitudes dos esquimós, no primeiro, e indígenas no segundo, estão bem demarcadas, apesar da ficcionalização que os respetivos realizadores incutiram às obras. Os “catalogadores” arranjaram, mais tarde, um termo para filmes que apresentavam traços reais de uma população indígena encenados para a câmara, a etnoficção.

Outros documentários existem que misturam diretamente o real com a visão onírica e poética do realizador. “O Homem da Câmara de Filmar”, de Vertov, é ainda o expoente máximo da poesia no documentário (recorde-se a cena inicial, a câmara “gigante” e o realizador a montar o tripé da sua câmara no topo da “gigante”). Num passado bem mais recente, “O Ato de Matar”, de Joshua Oppenheimer, documenta os genocidas indonésios e celebra a visão onírica referida acima através da efeminação desses assassinos, num cenário predominantemente rosa onde dançarinas executam passos perto da boca de um enorme peixe de pedra.

Outros grandes nomes figuram nesta categoria híbrida, como Rouch, Murnau, Epstein, Eisenstein, Marker, Fernando Lopes ou Oliveira (faltam aqui algumas dezenas).

Uma referência final para “A Valsa com Bashir”, de Ari Folman. Usando a animação para fazer o seu documentário oscarizado, Folman conseguiu atingir um nível de real que seria demasiado chocante se fosse filmado segundo os cânones do género. A violência transportada para uma animação tipo “graphic novel” faz-nos esquecer, momentaneamente, a cruel realidade dos factos. Este esquecimento momentâneo dá depois lugar ao choque, quando o cérebro recupera a premissa inicial: é um documentário sobre uma guerra. Real, duro, sem arestas polidas.

Mais importante do que tentar catalogar ou colocar na prateleira do género a que o filme pertence é vê-lo como a obra de arte que é em si, deixá-lo abalar o marasmo do real ao mesmo tempo que nos impele com as suas questões.

Quanto ao documentário do meu amigo realizador, posso assegurar que a minha perceção falhou em alguns dos momentos. E congratulei-o por isso.

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