E Agora? Lembra-me

O filme de Joaquim Pinto, E agora? Lembra-me, com o qual o Cinema Ideal, uma nova sala, inaugurou o seu programa, é um hino: coincide com a glória e o louvor da vida. É uma daquelas obras que interrompem o nosso quotidiano e marcam uma cesura. A ideia prévia de que o filme é uma espécie de diário do realizador que acompanha o tempo em que ele faz um tratamento experimental para o vírus da hepatite C (que coabita, no mesmo corpo, com o vírus do HIV) faz-nos esperar algo que não é aquilo que depois vamos ver: esperávamos uma elegia, um lamento, e o que temos é um hino, uma celebração, como os cantos em honra dos deuses; esperávamos gritos de revolta, elucubrações sobre a experiência daquilo relativamente ao qual não se pode ter nenhuma experiência, a morte, e o que temos é júbilo e glorificação da vida. Esta oposição que aqui estabelecemos entre hino e elegia define uma tensão essencial que encontramos em toda a história da poesia: ou é de carácter celebratório e canto de louvor (e então tem um carácter de hino), ou é um lamento por algo que se perdeu (e é elegíaca). Se o que se perdeu é um objecto puramente fantasmático, completamente irreal, submetido a uma introjecção, o sentimento que daí decorre, como sabemos, é a melancolia. O filme começa com uma lesma a deslizar (diríamos “lentamente”, mas há alguma lesma que deslize com rapidez?) até desaparecer do plano. E o que nos acontece, logo aí? Uma revelação: nós não sabíamos que uma lesma, um ser viscoso que causa geralmente alguma repugnância, podia afinal ser tão bela. E que o seu deslizar não é completamente silencioso: há uma música ténue do deslizar da lesma que o filme de Joaquim Pinto torna audível. Começa aí um “aleluia” que vai crescendo e um louvor abertamente franciscano das criaturas, de todas as criaturas: lesmas, homens, cães, plantas, árvores. No limite, o filme de Joaquim Pinto, do qual esperávamos que fosse centrado num Eu completamente totalitário (isto é, no centro de tudo porque, afinal, a sua contingência é o motivo primeiro do filme), opera o supremo milagre de inaugurar um campo transcendental sem eu nem consciência, algo como uma paisagem ética primordial, em que nenhuma psicologia e nenhuma subjectividade poderão jamais penetrar. E esse campo é o de uma pura imanência, a de uma identidade absoluta entre a imanência (o mundo das coisas, dos animais, das pessoas) e a vida. A única mística onde nos instala este filme que vai sendo percorrido por citações e comentários da Bíblia (feitos sobretudo por Nuno Leonel) é uma mística da imanência, a mística da lesma que desliza e nos faz descobrir que uma lesma pode ser sublime. Podemos chamar a isto beatitude? Sim, se reclamarmos a ideia espinosiana de beatitude, da experiência de si como causa imanente, que é uma forma de aquiescência. Mas o filme de Joaquim Pinto é absolutamente exemplar ainda noutro aspecto: ele apreende o que é mais difícil de descobrir e que se torna a sua matéria primeira: o quotidiano. O quotidiano torna-se, nele, quase uma utopia. E, aí, se íamos à espera da “epopeia”, dos valores heróicos de uma experiência-limite, aquilo a que temos direito (e devemos agradecer) é a insignificância do quotidiano. E, tal como acontecia com a lesma, nós muito provavelmente não sabíamos que esse quotidiano insignificante afinal era tão difícil de descobrir, tão cheio de segredo. Julgávamos conhecê-lo, mas o filme de Joaquim Pinto faz-nos ver que quase sempre ele nos escapa. Para estar à altura deste filme, é preciso afastar uma película compacta e resistente.

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