Como se da estátua brotassem flores

Há na cidade do Porto uma estátua junto da qual, todos os dias, há mais de 50 anos, se vêem flores frescas. Talvez seja caso único no mundo. Querendo ser expressão da imortalidade simbólica, é próprio das estátuas serem lugares de esquecimento e indiferença. Não raro, anónimas para quem por elas passa, apenas com as aves mantêm intimidade e relação. Não sucede assim com a estátua da Praça da República, na cidade Invicta. Esculpida em bronze por Henrique Moreira e assente em pedestal de granito, representa o Padre Américo vestido de batina, em acolhimento a duas crianças. Foi inaugurada a 16 de Julho de 1961, cinco anos após a sua morte.

“Contam-se por muitos milhares, lia-se na imprensa, os que, sem eira nem beira, vagueando pelos bancos dos jardins durante o dia, dormindo nas soleiras dos portais, misturados com o lixo das cidades, o bondoso sacerdote tornou em elementos preciosos”. Milhares eram também as pessoas presentes na inauguração do monumento. E mais adiante: “Mãos de mulheres, de crianças cobriram de flores o pedestal. Houve quem beijasse o solo e os pés da estátua, molhando-os com as suas lágrimas”.

Volvidos mais de 50 anos, todos os dias, sem exceção, há ali flores em idêntico tributo e gratidão. Pouco importa que as jarras desapareçam, improvisam-se outras que cumpram o mesmo fim sem suscitar cobiças: um garrafão de plástico cortado a meio, serve.

Chamam-lhe recoveiro dos pobres, revolucionário pacífico, pedagogo e modelo de caridade, educador da liberdade, místico na ação, empreendedor social, mestre da palavra, renovador de mentalidades, percursor do Vaticano II. Sendo tudo isso, não cabe em nenhum espartilho. Padre Américo torna impossível qualquer definição. Desalinhado com o sistema, sempre em contra corrente, pautado apenas pelo Evangelho, incomodou o poder (o político, o religioso…) e desassossegou consciências. Preferiu os mais frágeis: as crianças da rua, quando pela Europa se ouviam ainda os canhões da 2ª guerra mundial.

Portugal inteiro, colónias e Brasil acreditaram nele, na sua palavra, na sua obra, na sua simplicidade sem exibicionismo. Amaram-no. Chamaram-lhe Pai Américo. E como tal choraram a sua morte. Quis ser sepultado de batina e descalço. Dizem os jornais da época que no dia seguinte ao seu velório tinha ainda o rosto quente dos beijos sucessivos com que o povo, em romagem à igreja da Trindade, dele se despediu. Pelos relatos da imprensa e pela comoção oral de quem o presenciou, nunca o Porto terá vivido um funeral tão massivamente emotivo.

Está em curso o seu processo de canonização, mas há muito que Padre Américo “é santo no coração do povo”. Ninguém contesta que a história da Igreja em Portugal, sobretudo no âmbito da ação social e pensamento pedagógico não pode ser feita à margem da Obra da Rua. Em 2009, a Fundação Calouste Gulbenkian atribuiu-lhe o Prémio Educação. Consciente ou inconscientemente, há quem queira fazer dele um simples homem bom. Ora, como afirmou Carlos Galamba “se ele, depois de quarenta anos de vida agitada e dissipada, conseguiu ser um ‘homem bom’, foi porque era sacerdote e era santo”.

Que mãos anónimas plantam flores na estátua da Praça da República? Pouco importa, mas não me admiraria que fosse alguém lá de baixo do Barredo, esse lugar de “mártires, de heróis, de santos…”.

Docente da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto

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