Pontualidade secular

Há um ano, falar de guerra na Europa parecia não mais do que uma curiosidade histórica.

Chegaram a tempo das comemorações, as trincheiras. Vieram um pouco adiantadas, até. A primeira foto de uma trincheira da Grande Guerra na imprensa portuguesa é, se não erro, uma d’O Século publicada em meados de Setembro, na preparação para a Batalha do Aisne, que começou no dia 13 desse mês. Foi aí o começo oficial da guerra de trincheiras e do ponto de não-retorno para uma prolongada mortandade europeia.

Estamos com quinze dias de avanço, portanto. Já há trincheiras na Ucrânia, em torno de Mariupol, onde Putin decidiu abrir uma terceira frente da sua guerra cada vez mais direta. Também esta se aproxima do seu ponto de não-retorno.
Há um ano, falar de guerra na Europa parecia não mais do que uma curiosidade histórica. Dentro de pouco tempo começará a competição para ver quem foi mais presciente na adivinhação do que aí vinha. O que se está a passar, entretanto, é uma grande lição para todos os que achavam que a Europa já tinha lutado todas as suas guerras e que, portanto, poderíamos começar a desfazê-la.

A história regressa, sob a forma de uma trincheira agora, sob a forma de um inverno frio daqui a pouco. A frustração do povo será acicatada em cada um dos nossos países. Os oportunistas sairão das suas tocas por todo o continente. Na Rússia, pelo menos, já estão no poder.

Em fases de turbulência, não demora muito a que a paranóia e a megalomania tomem conta das cabeças. Iniciando a sua guerra com a delirante desculpa de que a Ucrânia estava tomada pelos fascistas, Putin tem estado a tratar bem a sua própria ninhada de fascistas, nacionalistas extremos e saudosistas do império. Tem na União Europeia a admiração de todos aqueles que suspiram por líderes fortes, de nacional-bolcheviques a neo-nazis. Na Crimeia recém-anexada, estão lá todos — da Frente Nacional francesa ao Jobbik húngaro — para um colóquio internacional sobre a Nova Rússia (Novorossiya). Este termo, que não era usado desde o tempo dos czares, designa a área que contorna o Mar Negro pelo norte, cortando a Ucrânia dos portos do seu território, e estendendo-se até Odessa, na fronteira com a Roménia, ou seja, com a União Europeia. Enterrada desde 1873, a Novorrossiya apareceu na boca de Putin duas ou três vezes nas últimas semanas — e de repente já tem bandeiras oficiais, exército irregular e mapas correndo pela Internet. Putin defende que é necessário pôr o seu reconhecimento como estado independente em cima da mesa.

Novorossiya vem acompanhar a Eurásia e o eurasianismo, a outra ideia da moda entre os círculos místico-ideológicos de que Putin se serve agora — ou que se servem dele? Trata-se da doutrina que define os russos como o centro de uma civilização própria, oposta à decadência do Ocidente, e que junta aos “valores cristãos europeus” ao autoritarismo “asiático”. Os seus defensores dizem que, na guerra de civilizações por que anseiam, todos os países limítrofes devem a sua segurança à Rússia, o que equivale a dizer que nenhum dele estará seguro se sair da sua área de influência.

São loucos, certamente. Esse é o outro sinal. Nenhuma fase destas fica completa sem a sua grande dose de malucos. E eles levam-se a sério.

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