A culpa do sistema

1- Dizia esta semana João Pereira Coutinho ao Jornal de Negócios que “os políticos são maus porque os portugueses não exigem melhor”, o que se atesta na placidez com que o país mastigou e digeriu o escândalo do Grupo Espírito Santo. O que há apenas meia dúzia de anos seria um acontecimento catastrófico viveu-se como um incidente da silly season. A desilusão leva à letargia e daqui à resignação e ao conformismo, como se em questão estivesse apenas mais uma etapa do inescapável trânsito pelo purgatório a que nos condenaram. Neste estado de espírito, de pouco vale alimentar a “ditadura do ressabiado”, na feliz expressão de João Miguel Tavares, nem acreditar que se resolvia o problema metendo toda a gente na cadeia. Talvez valha mais procurar os ingredientes do caldo de cultura política que estimulou a venalidade, o nepotismo e a impunidade, o festim com os dinheiros públicos, os casos do BPN, do Banco Privado, das PPP e agora do BES. O delírio de alguns protagonistas explica muita coisa, mas não explica tudo. Eles tornaram-se apenas criaturas bem adaptadas ao ecossistema criado por um dos estados mais macrocéfalos e centralizados do mundo desenvolvido.

Numa entrevista que concedeu há uns anos ao Jornal de Notícias, o actual ministro da Economia, António Pires de Lima, dizia que fazer negócios em Lisboa era muito mais fácil do que no Porto (ou em Faro) porque na periferia do poder não existia a mesma densidade de “capital social”. Na época, Pires de Lima administrava a Unicer e sabia do que falava. Sentia na pele a discriminação de um sistema de relações que se estabeleceu em torno do governo central e aí criou teias de dependência e cumplicidade onde a protecção, a auto-preservação e o combate aos “outros” se enraizaram. Se o Estado Novo inventou o condicionamento industrial para proteger meia dúzia de famílias e condenar a iniciativa privada ao ostracismo, a II República conservou essa protecção, não pela força da lei mas pelo estímulo a um submundo de interesses mantidos por relações feudais de privilégio e protecção.  

Nesse submundo, entre almoços onde todos se encontram e férias onde todos se conhecem, coexistem em perfeita harmonia políticos, banqueiros, advogados de negócios, consultores e jornalistas, aos quais em momentos precisos se juntaram lojas maçónicas e até os serviços secretos. Todos aceitam tacitamente relações de dependência e de patrocínio: eu protejo o teu negócio, tu cuidas do meu e ambos afastamos terceiros com a ajuda preciosa do poder político que há-de legislar, contratar, privatizar, pressionar ou chumbar todas as veleidades de outsiders inoportunos. Os mais fortes, duques do quilate de Ricardo Espírito Santo Salgado, dispõem de vastos impérios de influência, seja através de posições minoritárias ou pelo poder de impor condes ou viscondes nas empresas, ministros ou secretários de Estado nos governos. Ele era, como chegou a afirmar, “um banqueiro de todos os regimes”, mas talvez seja mais nítido notar que todos os regimes foram do banqueiro. Na sexta-feira, um interessante trabalho de Nuno Aguiar, no Jornal de Negócios, mostrava que pelo menos 96 ministros ocuparam cargos na banca desde o 25 de Abril.

Não nos iludamos: o peso do poder financeiro na política é tão antigo como os bancos de Veneza ou de Siena. E nem toda a influência da banca ou dos negócios é ilegítima. O que é diferente em Portugal é o grau dessa intimidade e a densidade das redes de influência sobre o poder político. A explicação para esse sistema de troca de favores pode estar no carácter de meia dúzia de protagonistas, mas depende bem mais da natureza de um poder político excessivamente concentrado no Governo central. A existência de uma única instância de decisão (fora a rédea curta dada às autarquias) para todo o país tornou-se num foco infeccioso que facilita os vírus do tráfico de influências, do nepotismo e da corrupção.

Dir-se-á com razão que Portugal não tem a exclusividade dos exemplos como o do BES. É verdade que muito do que hoje vimos em Portugal já aconteceu num país altamente descentralizado como a Espanha. Acreditar que a alteração da natureza concentracionária do Estado português garantiria uma viagem directa do purgatório para o céu é, por isso, inocente. Mas, não havendo mundos perfeitos, certo é que este sistema de poder unipolar, obscuro, despesista e ineficiente, volúvel e tolerante, quando não instigador, do tráfico de influências tornou-se um abcesso da democracia.

Como dizia esta semana Miguel Cadilhe ao Económico numa entrevista a Sérgio Figueiredo e a Paulo Ferreira, “a crise do BES põe em risco o regime e a própria República”. O que aconteceu é grave demais para que o deixemos diluir na distensão das férias e acreditemos que com meia dúzia de protagonistas atrás das grades o caso se resolve. Por uma questão de eficiência, de racionalidade e de transparência, seria bom que no debate sobre a reforma do Estado se deixassem de lado minudências e se chegasse ao essencial. O Estado português, hipercentralizado e volúvel à captura dos interesses de meia dúzia de poderosos, precisa de uma reforma muito mais ambiciosa do que a proposta desgarrada de Paulo Portas. Já não vai lá com emendas; precisa de novas fundações, de uma organização mais aberta, democrática e próxima dos modelos que vigoram em todos os países da EU com excepção dos que foram resgatados pela troika. Precisa de regressar às origens, à Constituição, e recuperar o princípio da regionalização que por lá permanece inscrito.

2 – A reforma do mapa judiciário ficará para a posteridade como a mais repugnante iniciativa política deste Governo. Porque é a prova acabada de que, na era de Pedro Passos Coelho no poder, Portugal se transformou no tal “protectorado” que Paulo Portas tantas vezes disse temer. Não é a austeridade nem o cumprimento do défice que a determinam. O que a impulsionou foi a necessidade do Governo acalmar a troika com uma suposta agenda de reformas. 

Ninguém é capaz de dizer o que se poupa (o próprio Governo desviou a sua argumentação desta trajectória) nem como a concentração vai trazer mais eficiência ao sistema judicial. Ninguém percebe como se vão deixar ao abandono imóveis de qualidade, que pagámos com os nossos impostos, para transferir os seus serviços para instalações sem condições para os receber. Não se percebe como se pode reclamar qualidade ou eficiência quando se condenam milhares de cidadãos, no geral pobres, idosos e moradores em zonas remotas a ter de fazer longas deslocações para disporem de um dos serviços mais básicos do Estado de Direito: o acesso à Justiça.

Depois de ficarem sem escolas (o que se compreende) ou serviços de saúde (o que na maioria dos casos se aceita), 47 municípios vão perder, total ou parcialmente, um bem que conseguiram conservar desde a primeira geração de forais. Se o Estado trata estes cidadãos como cidadãos de segunda, ao menos que lhes dispense os impostos. Num país interior com mais juventude, dinâmica e mais garra (ou uma Maria da Fonte) o que o Governo se prepara para consumar daria azo a mais uma dessas revoltas em que a periferia foi pródiga. Seria uma revolta justíssima.  

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