Todas as notas que se esperam na Banda do Mar

Tomando por modelo os Beatles, e a sua convicção de que nas canções perfeitas cada nota é aquela que ansiosamente se antecipa, Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e Fred Ferreira formaram a Banda do Mar. Uma outra forma de encaixarem as peças da amizade que os une.

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Na sua tirânica maioria, as biografias de qualquer banda pop/rock tentam convencer-nos que o seu início se deve a alguma situação ditada pelos deuses ou a um qualquer mandamento cósmico prevendo o encontro entre as duas ou mais pessoas em questão. No caso da Banda do Mar, trio que reúne Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e Fred Ferreira, o início da banda ter-se-á anunciado em definitivo na noite chuvosa do Inverno de 2012/13 em que, a caminho do Barreiro, o carro onde os três seguiam rebentou um pneu e tiveram de o trocar. Apenas isso, sem mais acontecimentos mirabolantes atarraxados.

Ou talvez se tenha iniciado no dia em que foi preciso carregar uns objectos de peso escada acima para o apartamento de um deles. Ou quando um deu boleia aos outros. Ou quando marcaram um jantar e ficaram na conversa. A Banda do Mar, diz Mallu, é o prolongamento quase involuntário de uma amizade a três que, mais tarde ou mais cedo, havia de encalhar no percurso profissional. “Se acontecesse não sermos músicos, estaríamos abrindo uma padaria – a Padaria do Mar”, imagina a cantora.

Marcelo, Mallu e Fred não sabem exactamente explicar como formaram esta banda. Sabem que foi acontecendo, tomando forma, espreitando por entre os buracos nas agendas de cada um, oscilando entre as desconfianças de Fred de que poderia nunca acontecer, o optimismo constante de Mallu e o pragmatismo de Marcelo. Sabem que nessa noite, a caminho do estúdio de Nick Nicotine, onde Camelo e Ferreira estavam a produzir o disco de estreia do brasileiro Wado, perceberam que aquela camaradagem tinha fatalmente de resultar em música. Mas música que não soasse a edição especial com DVD e baptizada como deluxe – antes um punhado de canções simples, que ficassem bem juntas e não se eclipsassem na sombra mediática das suas três figuras. Como se fosse uma banda formada nos corredores da escola, insuflada pela vaidade adolescente de tocar com os amigos, com a descomplicação de quem não espera mais do que um par de concertos; uma banda do tipo da que Camelo formou quando encontrou Rodrigo Barba e se juntaram (enquanto Los Hermanos) unidos pelo propósito ingénuo e precário de inventar uma sonoridade hardcore sobre a qual se escutavam letras que louvassem o amor. Claro que acabaram por ser outra coisa. Mas não é essa a história que aqui se conta.

A história que aqui se conta é a desta banda que talvez tenha começado de facto a fermentar desde o dia, há dez anos, em que Fred foi convidado pelo radialista Henrique Amaro a dar um pulo à sessão 3 Pistas dos Los Hermanos para a Antena 3. O baterista dos Orelha Negra, Buraka Som Sistema e 5-30 conhecia Camelo há cinco minutos quando este abriu a mochila e lhe passou para a mão uma série de CD: “Toma, leva, ouve, grava e como amanhã vamos tocar numa Fnac, se quiseres, aparece." Impressionado com aquela prova de confiança, Fred não apareceu apenas com os discos que levara de empréstimo. “Ele voltou, devolveu no hotel os CD e, como agradecimento, trouxe um vinho que a família dele fazia”, lembra Camelo. A partir desse momento, a relação entre os dois intensificou-se até passarem a tratar-se como família. Na madrugada do último dia 25 de Dezembro, quando Marcelo Camelo e Mallu Magalhães aterraram em Lisboa, depois de se terem mudado para Portugal durante esse ano de 2013, Fred estava à espera do casal à porta do aeroporto. Eram seis da manhã e chovia.

À boleia de Wado

Seguindo caminho por esse Inverno fora, paremos novamente na estrada para o Barreiro, nessoutra noite chuvosa. No estúdio de Nicotine estavam Wado e o álbum Vazio Tropical a tomar forma. Mas estava também um primeiro teste àquilo que poderia ser a Banda do Mar, sob a capa da produção (repartida por Fred e Marcelo) do quarto álbum do músico brasileiro conhecido de Camelo. “As coisas que sustentam a nossa relação”, admite Camelo, “a nossa amizade, o nosso carinho mútuo, elas se perpetuam na nossa relação de trabalho, mas a gente não sabia como ia ser essa dinâmica. Podia não dar certo. E não queríamos lançar uma coisa ruim só em nome da amizade.” “O disco do Wado serviu para percebermos o respeito que conseguimos manter pelo outro, a fluidez com que conseguíamos trabalhar dentro de um estúdio”, intervém Fred. “E foi muito tranquilo. Quando acabou o processo, não conversámos sobre a banda, mas ficámos provavelmente com a sensação de que era exactamente aquilo que esperávamos.”

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“A ideia da banda como um som e uma utopia” é algo que Marcelo diz sentir que “existe desde sempre”. Mas a verdade é que, sobretudo para os dois músicos brasileiros, antes de 2014 qualquer tentativa de lhe dar vida teria sido demasiado prematura. E isto vale antes de mais para Marcelo e Mallu porque são os dois autores das canções – “Não me faz sentido apresentar músicas minhas quando estou com duas pessoas que fazem as minhas canções preferidas”, justifica o baterista – e aqueles que, isolados da Banda do Mar, prosseguem carreiras defendidas a solo, com o seu próprio nome. De maneira que, antes de sentirem que os seus percursos solitários se encontravam finalmente sobre solo firme e com uma autonomia capaz de resistir a um pequeno desvio, a Banda do Mar teria nascido possivelmente tremida, coxa, agarrada às saias de Mallu e às calças de Marcelo, com medo de dar os primeiros passos e logo tropeçar ou de voltar apressada e em pânico para uma condição de segurança.


A mudança do casal para Lisboa impulsionou também, naturalmente, a formação do trio. Algo que se foi impondo como espelho do estabelecimento de novas rotinas numa cidade que se vai descobrindo diariamente. Incluindo a escolha da mercearia ou a ida ao supermercado com um cartão de cliente. “Já tenho o cartãozinho”, confessa Mallu. “Só não tenho carro ainda, acumulo [descontos em] combustível não sei para quê.” Para Fred, Mallu e Marcelo “são cidadãos de Lisboa normais, encaixaram-se na cidade como cidadãos locais e a banda fez parte disso, foi trabalhada num processo natural, com dias de trabalho normais”. Antes, com o Atlântico pelo meio, a Banda do Mar seria pouco viável, dada a natureza das suas canções descomplicadas, com ares de sala de ensaio e não de maquetagem em programa de computador. E não teria a mesma sustentação como extensão deste gesto de quotidiano, de invasão do reduto profissional pelo dia-a-dia das relações pessoais. “A nossa vinda para Lisboa ajudou a fincar os pés numa coisa mais real, sair do campo da vontade”, reforça Camelo. A própria respiração da cidade funcionou como impulso.

A nota que se espera

Depois da clarificação da vontade comum de avançar, teve de surgir um som para a Banda do Mar, assente numa solução pouco estranha às composições de Marcelo Camelo e ao último álbum de Mallu, Pitanga, produzido pelo marido. Mas na cabeça dos dois autores das canções (que alternam as vozes) estava uma ideia defendida por Fred na primeira conversa sobre a banda prestes a tornar-se realidade: “Lembrámos do Fred falando dos Beatles e de a próxima nota ser sempre a que você espera, a nota que você quer ouvir. Aquela mudança que você anteviu e está torcendo para que aconteça, e é mesmo essa que acontece.” Tal familiaridade impera nas canções do trio, mas a referência dos Beatles não se perde nesse mero enunciado de intenções. Há uma liberdade mais rock do que nos discos de qualquer um deles e as guitarras soam frequentemente à improvisada Backbeat Band (em que gente dos Afghan Whigs, Sonic Youth, Gumball, R.E.M. e Foo Fighters interpreta o reportório inicial dos quatro de Liverpool) na banda sonora para o filme com mesmo nome, focado nos tempos em que os Beatles eram cinco, em Hamburgo, e o baterista se chamava ainda Pete Best.

Essa premissa ajudou a “dirigir o olhar no sentido de montar a banda”. “Por antagonismo aos nossos trabalhos a solo que acabam impondo à gente uma concentração laboriosa”, descreve Marcelo Camelo, “queremos deixar a Banda do Mar ser como um encontro de amigos, deixar que aquele primeiro espírito mais desarrumado seja o gestor das escolhas. Nessa conversa a gente anteviu um pouco o que queria fazer e acho que foi esse o caminho das nossas opções de composição. Não queríamos fazer uma coisa mirabolante, revolucionária; queríamos o contrário, uma coisa que fosse simples, gostosa, leve.”

O nome veio também como algo simples, mas pesquisado exaustivamente para garantir que um dia destes não aparece um qualquer comentário na página de Facebook do habitual queixoso cuspindo ira e fel, alertando para o facto de “já haver uma banda no interior da Nova Zelândia com o mesmo nome”. A Banda do Mar, enquanto designação, é  “mais um convite do que um postulado”, nome propositadamente aberto e “símbolo de várias coisas – desde a fluidez da maré, a aventura de se lançar no mar, a melancolia do pescador, o mistério, o perigo dos monstros marinhos, os tubarões, Neptuno com tridente, até ao surf e à onda, são muitas entidades diferentes que brotam desse símbolo”, lança Marcelo.

O simbolismo que não lhes interessava era todo aquele que pudesse remeter para um imaginário romântico, prontamente invalidado pelo facto de este ser um projecto que junta os dois mas não é a dois. “Não existe uma hierarquia de casal, é uma banda, e o facto de nós sermos casados é uma coincidência”, garante a cantora. “No fundo”, acrescenta Marcelo, “todas as razões tomam formas inconscientes e às vezes a gente rege a nossa vida por um monte de coisas que sabemos sem saber. Acho interessante, como observação a posteriori, deslocar o eixo da nossa relação pessoal. Um desdobramento só de nós dois seria tão banal, tão quotidiano do que a gente já faz diariamente. E o Fred não é uma pessoa qualquer, é o meu irmão de há dez anos e contribui com muita experiência.”

No fundo, a única extrapolação autorizada é de que a Banda do Mar funciona como “uma remontagem desta amizade”. Com o cuidado de garantir, à partida, que não se partem peças pelo caminho.

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