“Devíamos honrar os dissidentes. Em vez de recriar batalhas, que tal recriar a Trégua do Natal de 1914?”

Há um outro lado da Primeira Guerra que não é feito pelos ministros, pelos generais ou pela massa de cidadãos que, enlevados pelo patriotismo e pela propaganda, se colocaram ao lado da máquina bélica. O historiador Adam Hochschild dedicou-se a procurar o lado da dissidência e da contestação à guerra num dos mais importantes livros sobre o conflito e explica por que razão esses contestatários merecem a mesma homenagem que é tributada aos heróis oficiais.

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Liga dos Combatentes

To End All Wars: A Story of Loyalty and Rebellion, 1914–1918, livro da autoria de Adam Hochschild, é um dos mais importantes (e esquecidos) livros sobre a Primeira Guerra Mundial. Trata-se de uma cativante e estimulante história da dissidência no período histórico correspondente, baseada numa portentosa biografia colectiva de formas plurais de desobediência e resistência ao desvario e ao descomedimento colectivo, à ambição e à avidez individual. É também uma história da produção social do consentimento e do consenso organizados. Ao contrário de antigos e actuais relatos de conflitos militares – extremamente limitados e superficiais na sua “análise”, supostamente “realista”, das “grandes” e “pequenas” potências, dos “grandes” homens (sempre menos das grandes mulheres), dos “grandes” actos heróicos ou dos “grandes” desastres – o seu livro proporciona um rico e apaixonante relato de críticos, desertores, objectores de consciência e defensores do pacifismo, que, apesar de toda a pressão social e não obstante os custos simbólicos e materiais das suas decisões, mantiveram-se firmemente contra a guerra.

To End All Wars centra-se numa galeria de indivíduos louváveis que assumiram uma postura crítica a respeito das justificações várias da raison d’être da Primeira Guerra Mundial. A lista inclui personalidades como Bertrand Russell, Edmund Dene Morel, Emily Hobhouse, Sylvia Pankhurst, Charlotte Despard e Alice Wheeldon.

Russell é provavelmente o mais famoso intelectual envolvido nas actividades anti-guerra, promovendo de modo empenhado uma agenda pacifista. Como ele notou, foi difícil questionar a razão da guerra “quando toda a nação” estava “num estado de violenta excitação colectiva”. Para ele, “nenhum grande princípio” estava “em causa”, “nenhum grande propósito humano” estava “presente em qualquer dos lados”.

Edmund D. Morel foi o fundador da Union of Democratic Control, uma organização que se opunha com frontalidade à influência militar na condução dos negócios públicos, nomeadamente na definição da política externa. Ao mesmo tempo, exigia a prestação pública das contas dos esforços de guerra e denunciava a censura típica do período. Foi também uma figura central em toda a questão do Congo, que Hochschild explorou brilhantemente em King Leopold’s Ghost (1998).

Emily Hobhouse foi a principal promotora da Open Christmas Letter (1914), uma mensagem pacifista pública assinada por 101 sufragistas britânicas às suas companheiras na Alemanha e na Áustria. Também foi responsável pela denúncia dos campos de concentração desumanos criados para encarcerar mulheres e crianças bóeres na África do Sul (por exemplo, o caso de Bloemfontein), durante a chamada Segunda Guerra Bóer (1899-1902).

Sylvia Pankhurst, Charlotte Despard e Alice Wheeldon, entre outras, foram todas importantes sufragistas. Através do seu exemplo, Hochschild mostra a relação profunda entre o movimento pacifista e sectores do movimento feminista que, tal como sucedeu com o internacionalismo operário e com a Segunda Internacional, não deixou de revelar tensões e fracturas internas significativas.

O caso de Alice Wheeldon é também importante por outras razões. Para além de sufragista, Wheeldon foi também uma pacifista categórica, uma ateia, e uma marxista empenhada. Foi acusada de conspirar para matar David Lloyd George, primeiro-ministro britânico, depois de ter activamente acolhido e protegido objectores da conscrição militar. O processo contra Wheeldon foi parcialmente fabricado pelo MI5, demonstrando como o governo, como refere Hochschild no livro, estava “ávido em desgraciar o movimento anti-guerra”...

Estão são apenas alguns exemplos memoráveis que Hochschild explora no seu livro.

Em 1998, Hochschild publicou O Fantasma do Rei Leopoldo: Uma história de voracidade, terror e heroísmo na África colonial (1998), um impressionante relato das atrocidades cometidas pelo empreendimento colonial patrocinado pelo Rei belga, que foi editado entre nós pela Editorial Caminho em 2002. Em 2005, assinou Bury the Chains (2005), uma informativa contribuição para a compreensão dos movimentos abolicionistas de oitocentos no império britânico. Com To End All Wars, Adam Hochschild voltou a escrever um trabalho poderoso, de leitura fácil, rigoroso e provocador no conteúdo. Para lá de inúmeros aspectos relevantes que revisitamos nesta entrevista, é importante salientar ainda o modo como esta obra pode e deve servir de modelo para o modo como pensamos e comemoramos este conflito: como Hochschild nos diz a terminar esta entrevista, “em vez de recriar batalhas, que tal recriar a Trégua do Natal de 1914?”.

Porque se sentiu compelido a escrever a história dos protagonistas da contestação à Primeira Guerra Mundial e a sublinhar o seu papel, inúmeras vezes obscurecido ou depreciado, pelos publicistas de serviço, dentro e fora da academia, no passado como no presente?
Sempre fui profundamente fascinado por aqueles que resistiram à I Guerra Mundial, desde que li, quando era adolescente, a biografia de Bertrand Russell e depois o trabalho de Sheila Rowbotham sobre Alice Wheeldon. Ter a coragem de falar tão ousadamente quando esse jingoísmo predominava, impressionou-me. Há, também, um bom livro a ser escrito sobre os resistentes desse tempo nos Estados Unidos, mas por motivos de enfoque dramático eu tive de escolher um ou outro país e escolhi a Grã-Bretanha. Também encontrei um eco muito forte nesses tempos de algo que vivi e em que estive profundamente envolvido: o movimento contra a Guerra do Vietname nos Estados Unidos. Nessa altura, a guerra também dividiu famílias; assim sendo, eu fiquei intrigado com o caso das famílias divididas da Grã-Bretanha em 1914-1918, e usei isso como estrutura narrativa no meu livro. No período do Vietname, também houve uma espionagem governamental epidémica sobre os cidadãos. Quando, mais tarde, usando o Freedom of Information Act, eu pude aceder aos meus registos de vigilância do FBI, da CIA e dos serviços secretos militares, eles extravasavam as 100 páginas... e eu era um peixe bem pequeno dentro deste movimento. Daí ficar fascinado em ler os registos de vigilância governamentais da Scotland Yard e dos serviços secretos militares sobre os dissidentes do Reino Unido de 1914-1918. Senti que estava a ver nesse trabalho a mesma mentalidade que os agentes do FBI reportavam sobre mim.

A suspensão, muitas vezes a supressão absoluta, de reservas morais ao militarismo entusiástico e ao jingoísmo generalizado é, ainda hoje, uma condição permanente das sociedades contemporâneas. O que podemos aprender com comportamento exemplar destes indivíduos?
O que podemos aprender com os dissidentes? Que devemos sempre falar abertamente e resistir àquilo que pensas estar errado. Fazer uso da liberdade existente, apesar de, mesmo numa sociedade democrática, esse espaço encolher em tempo de guerra. Desse modo mantém-se um espírito de inteligência e honestidade vivo. As gerações seguintes honrarão essa atitude, mesmo que no teu tempo não o façam.

Por que pensa que nós sabemos mais dos esforços de guerra do que dos esforços de paz; mais sobre histórias e narrativas de lealdade do que de histórias de resistência e rebelião?
Porque, invariavelmente, os enormes recursos do governo são aplicados para celebrar os veteranos de guerra. Eles são os honrados através de monumentos, museus, cemitérios especiais e, nos Estados Unidos, por uma rede de hospitais especial. Eu sou completamente a favor que as pessoas tenham cuidados médicos de qualidade pagos pelo Estado, e alguém que teve a infelicidade de lutar no Vietname e, talvez, tenha sido ferido, é inquestionável que que merece esse cuidado. Mas os americanos que se opuseram à guerra – uma posição com a qual, em retrospectiva, a maioria das pessoas hoje concorda – não merecem o mesmo?

A galeria de indivíduos louváveis, presentes no seu livro, que assumiram uma postura crítica a respeito das justificações várias da raison d’être da I Guerra Mundial, é notável. Abordemos alguns exemplos. Por que pensa que tão poucos intelectuais assumiram posições similares àquelas de Russell?
A maioria de nós é tímida. A maioria de nós quer a aprovação daqueles que nos rodeiam. É preciso uma certa coragem para manter convicções opostas quando o militarismo impera e os dissidentes são escarnecidos abertamente na rua. Os intelectuais são tão tímidos como todos os outros: veja o extraordinário encontro dos mais conhecidos escritores da Grã-Bretanha cerca de seis semanas depois do início da guerra, para dizerem aos funcionários do governo o que eles poderiam fazer para ajudar nos esforços de guerra. Thomas Hardy, James Barrie, Arthur Conan Doyle e muitos outros participaram nisto.

Falemos de Morel e de Hobhouse. Ambos foram confrontados com as iniquidades das situações imperiais, que por vezes constituíram laboratórios experimentais para novas técnicas e tecnologias de coerção simbólica e material, mais tarde aperfeiçoadas pelos regimes autoritários, durante o século XX. Pensa que estas experiências prévias foram importantes na forma como se ponderaram as causas, se decidiram os modi operandi e se avaliaram as prováveis consequências da guerra?
Sim, penso que isso é verdade. Quando se esteve profundamente envolvido na luta contra uma imensa injustiça – nesse caso, a injustiça da conquista colonial – quando todos em redor tomam isso como garantido, penso que isso abre os olhos para injustiças de outro tipo. Vi isso na minha própria experiência e escrevi um pouco sobre isso no meu primeiro livro, Half the Way Home: A Memoir of Father and Son.

Que importância têm os casos de Sylvia Pankhurst, Charlotte Despard e Alice Wheeldon no nosso esforço para entender a relação entre os movimentos feministas do início do século XX e movimento pacifista em geral?
Pelas razões que acima enunciei, penso que não foi por acaso que uma larga porção das mulheres que se opuseram à guerra haviam combatido activamente pelo sufrágio. De facto, suspeito que virtualmente não houve nenhuma mulher britânica que se tivesse oposto à guerra que não favorecesse o sufrágio. Mas, claro, o movimento sufragista feminino britânico dividiu-se, com Emmeline Pankhurst a liderar algumas das suas seguidoras no apoio ao esforço de guerra.

O que pensa ser particularmente relevante sobre o caso de Alice Wheeldon, tendo em conta que há um movimento público que pretende, finalmente, limpar o seu nome?
Um dos prazeres de escrever um livro como este, são as pessoas com quem ele te põe em contacto. Agora conheço pessoas de Derby, onde Wheeldon viveu, e uma das suas duas bisnetas da Austrália, que estão a trabalhar com aquelas pessoas para tentar limpar o nome dela. Ela foi uma mulher corajosa, sem uma rede de apoio de intelectuais com ideias semelhantes, como Bertrand Russell teve. Mãe solteira, no limiar da pobreza – sustentava-se vendendo roupa usada num quarto em sua casa – ainda assim ela abrigou foragidos da conscrição obrigatória, criou quatro filhos que partilhavam da sua visão política, lia abundantemente, enfrentou um julgamento-espectáculo, e depois suportou a prisão. Uma verdadeira heroína. Estou encantado com a cidade de Derby que, por fim, colocou uma placa comemorativa onde era a sua casa.

Um dos assuntos importantes que o seu trabalho confronta é a clássica disputa historiográfica entre aqueles que privilegiam o “consenso” e o “consentimento”, promovido por uma cultura de patriotismo, e aqueles que enfatizam o “condicionamento”, promovido por uma propaganda e uma coerção sociais coordenadas pelo Estado, como vias fundamentais para o compromisso com e a mobilização para a guerra. Qual é a sua opinião nesta contenda historiográfica?
Creio que não li suficientemente sobre teoria política para comentar isto de forma inteligente. Mas este foi certamente um tempo onde houve uma enorme tentativa de produzir consenso, para usar a expressão de Chomsky!

A este propósito, quão inovadora era a propaganda coordenada pelo Estado, tomando o War Propaganda Bureau como exemplo?
Esta foi a primeira grande guerra de propaganda. Guerras europeias anteriores haviam sido normalmente combatidas por voluntários em vez de conscritos, pelo que não havia a necessidade de fazer crescer o militarismo em toda a população. E as guerras anteriores na Europa raramente haviam durado tanto tempo, não havendo a necessidade de fazer a população civil enfrentar um tão longo período de sacrifício económico. E, claro, algumas dessas guerras haviam sido guerras de conquista colonial, algo que quase todos os europeus assumiam que tinham direito a fazer, pelo que aí não era necessária uma propaganda organizada. Mas em 1914-1918, para manter a população civil espicaçada durante quatro anos e meio de combates difíceis e mortíferos, um enorme esforço de propaganda era necessário. A propaganda britânica foi a mais sofisticada, talvez porque a Grã-Bretanha não foi atacada em 1914 – ao contrário da França, por exemplo – e, assim sendo, era necessário um maior esforço para estimular o fervor bélico necessário ao conflito e à sua continuação.

Muitos jornalistas e estudiosos têm traçado inúmeros paralelos entre o contexto histórico do pré-guerra e os actuais acontecimentos mundiais. Pense em Margaret MacMillan, por exemplo. Podemos falar de “lições históricas”, passíveis de ser retiradas da análise da I Guerra Mundial, com alguma utilidade para os actores políticos contemporâneos?
Penso que há algumas “lições históricas” a retirar, e desejo que o presidente George W. Bush lhes tivesse prestado mais atenção antes de lançar as guerras no Iraque e no Afeganistão. Há certamente alguns paralelos directos entre estas guerras e a I Guerra Mundial. Primeiro, as guerras nunca acabam tão rapidamente como, a princípio, todos esperam. Segundo, lição para os poderosos: as novas armas tecnologicamente impressionantes das quais tanto se orgulham também podem estar do outro lado. Terceiro, as guerras têm vastas, vastas consequências inesperadas, e indesejadas. Quarto, a maioria das guerras cria mais problemas do que resolve. Para exemplificar os dois últimos pontos basta ver o que está a acontecer no Iraque neste preciso momento!

Como avalia as comemorações que estão a ser realizadas em vários países? A história destes dissidentes deveria ocupar um lugar especial nelas, não lhe parece? De um modo geral, sente que a memória colectiva da I Guerra Mundial ainda não tem um espaço apropriado para aqueles que resistiram à sua irracionalidade e aos seus custos humanos?
Durante o período de comemoração que agora começa e poderá durar de alguma forma nos próximos quatro anos, definitivamente precisamos de honrar os dissidentes. Eles são os heróis e as heroínas que quero ver celebrados. Quase todos os monumentos são para generais, e o que enche os museus de guerra em todo o lado é equipamento militar. E depois, claro, as centenas e centenas de sepulturas militares, grandes e pequenas, que se espalham ao longo da Frente Ocidental, na França e na Bélgica, desenhadas para se honrar os mortos e respeitar o seu grande sacrifício. Bem, não quero desonrar os mortos, mas tenho pena por terem perdido as suas vidas numa catástrofe que piorou o nosso mundo de inúmeras maneiras. E aqui incluo os dois familiares que morreram no Exército norte-americano em 1918. 
Devíamos honrar os dissidentes, incluindo aqueles que morreram na prisão e aqueles que – como E. D. Morel e Alice Wheeldon – tiveram, obviamente, as suas vidas encurtadas pelas dificuldades que enfrentaram na prisão. E, em vez de recriar batalhas, que tal recriar a Trégua do Natal de 1914?


Miguel Bandeira Jerónimo é investigador na ICS-ULisboa
 
Amanhã: A Primeira Guerra Mundial e a Queda da República. Uma relação Complexa. Por António Costa Pinto
 

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Casa de campo com um posto português Colecção Portugal na Grande Guerra/Colecção Garcez - Arquivo Histórico Militar
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Desembarque de soldados portugueses em Brest, França, início de 1917 Agence Rol/Bibliothèque Nationale de France
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