Que será de ti, meu pequeno, que te não poderei proteger?

Tudo fizemos para que a tua vida fosse o que de melhor se pode conseguir entre estrelas cadentes e poeira. Brincaste como pudeste, cresceste como quiseste. Fizeste amigos, também eles filhos de amigos – um em especial, de amiga, recordaremos sempre. E, com tudo isso, fizeste-nos viver

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Finbarr O'Reilly/Reuters

Embalo-te, uma vez mais. Lá fora, as estrelas gritam estridentes, enquanto ele não chega. Só quero que o pó da guerra assente, para que volte; para que nos abrace. Embalo-te.

Todos os dias a luta pelo quotidiano me abafa. O aperto no coração de ver meu companheiro partir, uso-o para afagar o pequeno que guardo nos braços; és tu, sempre. Tanta dor, e ainda tão criança. Ontem acordei-te, sem querer; não aguentei de raiva. As conversas fátuas de mulheres sobreviventes informaram: amiga, mais do que amiga, tinha sido escolhida e colhida por uma estrela; em casa, julgando-se segura. Chorei; e acordei-te, meu filho.

Saberás tu, um dia, porquê?

Longos rios por pontes passaram desde que o companheirismo fiel do teu pai deixou de ser par para a companhia que recebo de amigas; dessa amiga. Soube-o cedo, mas não pude mudar-me; nem mudar o bairro. Por isso teu pai aqui está; comigo. Amo-o, mas é ela quem sempre me ilumina o pensamento... ou iluminava.

Ontem chorei, mas não tanto como quando, tempos antes, à porta me bateu. Já mãe de um filho esguio e atento, disse-me que não poderia ficar com o segundo, por ser diferente; que seu companheiro não o aceitava, e que se eu não ficasse com ele, o teria de abandonar; que guardaríamos todos segredo.

E assim te recebi, meu filho. Foi nesse dia que eu e o teu pai crescemos, e na amarga distância de impulsos que nos separa, nos amámos em torno de ti.

Tudo fizemos para que a tua vida fosse o que de melhor se pode conseguir entre estrelas cadentes e poeira. Brincaste como pudeste, cresceste como quiseste. Fizeste amigos, também eles filhos de amigos – um em especial, de amiga, recordaremos sempre. E, com tudo isso, fizeste-nos viver.

Mas ontem a dor foi insuportável. Procurei acalmar-te e acalmar-me a mim; que tudo seria mais fácil quando teu pai voltasse da quotidiana procura por pão. E voltou...

Mas quando chegou, trazia nos olhos desgraça maior. Párias sem casa, pai e filho tinham já perdido o quente afago do meu amor feminino quando foram, também eles, escolhidos. E a dor que eu nesse momento sentia mudou para a dor que sentiste e não consegui acalmar. Teu amigo, a sonhar por ti, perdido para sempre. Teu pai protegeu-te como pôde – deu-te a comer o pão que sempre te aguentará – e pudemos, enfim, dormir; os três, juntos.

Hoje, embalo-te diferente. São já horas; mas não ainda. Teu pai não chega. São já horas, e ele não chega; não chegará, jamais. Sei-me sozinha, agora, na surdez estridente do céu e cegueira brava do pó, da guerra; e temo por ti. «Que será de ti, meu pequeno, que te não poderei proteger?», rezo com o temor dos tempos de probabilidades escassas.

Mas tu, repleto do poder que a infância seduz, dizes-me que não tema; que és forte. Que tratarás de tudo o que é preciso; e eu cresço um pouco mais contigo. Ainda que tragas no olhar o teu pai, meu companheiro, e o teu amigo, teu irmão, sinto-te capaz de mudar o mundo. Seguir-te-ei, então.

Os teus olhos falam saudade; saberei viver dela para sempre.

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