Literatura com vista para o mar do Norte

Em poucos anos começou a afirmar-se como um dos mais importantes festivais literários europeus. No Museu de Arte Moderna de Louisiana, nos arredores de Copenhaga, reúnem-se nomes grandes da literatura mundial, bem como muitos autores nórdicos. Margaret Atwood, Lydia Davis, Joyce Carol Oates e Herta Müller foram este ano as cabeças de cartaz.

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Christopher Regild/Louisiana Museum of Modern Art.
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Lydia Davis Louisiana Museum of Modern Art.
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Joyce Carol Oates Louisiana Museum of Modern Art.
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Margaret Atwood Louisiana Museum of Modern Art.
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À espera de Herta Müller Louisiana Museum of Modern Art.
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Herta Müller antes de entrar em palco
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O público a assistir à conversa com Herta Müller Louisiana Museum of Modern Art.

O festival literário de Louisiana, em Humlebæk, nos arredores de Copenhaga, criado em 2010 e tendo lugar em vários espaços espalhados pelo bonito jardim de esculturas do Museu de Arte Moderna de Louisiana, que tem o mar do Norte como pano de fundo, tem atraído todos os anos à pequena cidade dinamarquesa milhares de visitantes, muitos deles estrangeiros.

Desde o primeiro ano que têm passado por lá nomes grandes da literatura mundial (Ian McEwan, Chimamanda Adichie, Jonathan Safran Foer, Jeffrey Eugenides, ou o poeta sírio Adónis, para nomear apenas alguns) a par de muitos autores escandinavos, sobretudo dinamarqueses. Os eventos – sessões de leitura, entrevistas, conversas entre escritores, concertos, performances musicais e poéticas – decorrem ao longo da tarde e à mesma hora em três ou quatro palcos diferentes. As sessões com os autores mais conhecidos têm lugar num grande auditório mas com transmissão em circuito fechado para uma tenda onde se juntam os visitantes que não conseguiram chegar uma hora antes de maneira a poderem garantir um lugar no auditório.

Do programa da edição do festival deste ano, que decorreu desde dia 21 até domingo, destacava-se a presença de quatro grandes nomes, todos de mulheres: as norte-americanas Lydia Davis e Joyce Carol Oates, a canadiana Margaret Atwood e a romena-alemã Herta Müller (Prémio Nobel da Literatura 2009). A par destas autoras estiveram também presentes, entre muitos outros, Teju Cole, Péter Esterházi, Sjón, Philipp Meyer, Daniel Kehlmann, Michael Ondaatje, David Mitchell, e a sensação da literatura dinamarquesa dos últimos anos, Josefine Klougart (ainda inédita em Portugal mas já com diversos prémios e traduções um pouco por toda a Europa).

Ser “paciente com o caos” 

Uma das sessões mais esperadas era a da entrevista a Lydia Davis, que decorreu interrompida por constantes gargalhadas do público às respostas bem-humoradas da autora. Davis lembrou a infância e a adolescência, os pais (ambos escritores), e como o interesse da família, pouco prática segundo ela, se virava sobretudo para a discussão de ideias e de como o estudo da língua era uma das preocupações caseiras.

Encorajada a escrever desde muito nova, confessou que só no último ano da faculdade começou a querer ser escritora, a ensaiar histórias, e estas ainda obedecendo ao que tinha aprendido que uma história deveria ser: clara caracterização das personagens, escolha de um tempo narrativo, uma acção encadeada. “Mas descobri mais tarde que é muito mais fácil para mim se escrever uma história quase de seguida desde a primeira frase até ao fim, sem ter de estar a pensar em todas essas coisas que nos ensinaram”, disse.

Foi então que impôs a si própria a obrigatoriedade de escrever dois pequenos contos por dia mas da maneira como fossem aparecendo e com especial cuidado na linguagem. Regra que de vez em quando quebrou porque houve dias em que chegou a escrever sete pequenos contos. “Se estivermos à espera de uma boa ideia ela nunca vai chegar”, disse Lydia Davis, “uma boa história não aparece naturalmente, é preciso que nos sentemos a escrever para que as coisas interessantes comecem a aparecer.”

Davis disse que a maneira como escolhe as histórias não lhe passa pelo consciente, que por vezes são imagens da vida diária, dos vizinhos, de frases soltas que ouve na rua ou em restaurantes, e que os lugares onde escreve também lhe dão ideias, e lembrou os tempos em que viveu no campo, quase sozinha ou pelo menos com poucos vizinhos.

“Escrever ficção é tomar o controlo da realidade”, sublinhou. A música, sobretudo a estrutura de uma peça, ajudam-na também muito – ela teve formação musical em piano e violino – e admite que esses estudos lhe deram um sentido físico para a estrutura, e que é isso que transporta para as suas pequenas histórias. Questionada sobre que conselhos daria a jovens escritores, fez notar que uma das coisas essenciais da escrita é a capacidade de cortar e de ser “paciente com o caos” em que a escrita por vezes se encontra. “Preocupem-se se estiverem muito contentes com o que escreveram”, disse.

No dia seguinte à intervenção de Lydia Davis, as atenções estavam viradas para uma conversa entre a canadiana Margaret Atwood e o islandês Sjón (que, para além de escritor, é músico e escreveu algumas das canções de Björk). Atwood recordou como os grandes autores de ficção científica dos anos 1950 a marcaram, as histórias de outros planetas e galáxias, com animais e plantas estranhas, aliada a uma grande ligação que ela tinha com a natureza pois acompanhava muito o pai que era biólogo.

A conversa entre os dois escritores, sempre num registo bem-humorado, acabou por se centrar nas relações entre literatura e ciência, com Sjón a ironizar dizendo que autores como Atwood não deveriam escrever sobre gatos e árvores fluorescentes, ou outras raridades, pois são um perigo ao darem ideias aos cientistas que podem transformar a ficção em realidade.

O autor islandês fez uma espécie de elogio da ideia de “instabilidade” como motor para o progresso humano. Atwood interrompeu-o, dizendo que ele só está interessado na instabilidade porque é islandês e a ilha tem um problema de placas tectónicas e de vulcões. E depois, num registo mais sério, a autora canadiana lembrou que a ciência, que em teoria tudo pode medir (ao invés dos escritores que trabalham sobre coisas não mensuráveis), tem sido uma coisa instável, pois depois de se achar que a classificação de animais, plantas e fungos estava estabilizada eis que aparece a genética com a possibilidade de misturar genes de vários reinos; ou ainda a real possibilidade de existirem universos paralelos.

"Não sou como o Hemingway ou o Joyce"

Numa outra sessão, a norte-americana Joyce Carol Oates conseguiu arrancar sucessivas gargalhadas à assistência. Sempre muito irónica, sublinhou a hipocrisia moral dos EUA, recordou os “pais fundadores” da América e o recente escândalo com a descoberta da existência de uma amante, uma escrava negra, na vida de Thomas Jefferson, o principal autor da Declaração da Independência, ele que a História apresentava como um branco cristão moralmente irrepreensível.

Brincou com a ideia de a CIA enviar um drone para a eliminar – entretanto agitou as mãos para afastar uma mosca de diante da cara e perguntou: “Mas é uma mosca ou pequeno drone?” Confessou-se interessada na “típica personalidade americana”, em a retratar, bem como à “american victorian culture”. Confessou alguns hábitos que a ajudam na escrita, como correr, andar ou fazer meditação antes de se sentar a escrever. “Tenho de fazer isto porque não bebo, não sou uma pessoa interessante, não sou como o Hemingway ou o Joyce.”

O festival encerrou no domingo com mais uma concorrida sessão, desta vez com Herta Müller, no seu habitual registo intimista e sofrido, invocando a vida passada sob a ditadura de Ceausescu e o medo como um dos motores da sua escrita.

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