Sangue e saliva no ADN da Contextile

As formas humanas estão um pouco por toda a bienal de arte têxtil Contextile, em Guimarães. Mas na mostra competitiva há quem tenha procurado um ponto extremo no contacto entre o corpo e os tecidos.

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Nas obras de David Catá, a agulha fura a pele levando um fio atrás, como se faz quando se borda NELSON GARRIDO
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A exposição internacional desta segunda edição da Contextile inclui obras de 50 artistas, oriundos de 34 países NELSON GARRIDO
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Uma das peças que podem ser vistas na Casa da Memória NELSON GARRIDO

Há uma brincadeira de criança em que a pele das mãos é furada ao de leve com a ponta de uma agulha. Os dedos ficam abertos, mas apenas numa camada superficial. Quase não há dor. Muito menos sangue. Mas David Catá quis ir mais longe nessa experiência. Nas suas obras, a agulha cruza a derme, levando um fio atrás, como se faz quando se está a bordar. É precisamente isso que o artista espanhol faz: bordar sobre a palma das mãos, fotografando o resultado. Não foi o único a levar ao extremo o confronto entre o corpo e os materiais têxteis entre os 50 criadores seleccionados para a exposição internacional competitiva da bienal de arte têxtil contemporânea de Guimarães, Contextile, que está desde 26 de Julho na Casa da Memória.

Nos últimos três anos, Catá desenhou a agulha as caras de alguns dos seus mais próximos – namoradas, professores, familiares – na palma das mãos. Depois de desfazer esse trabalho, fotografou a marca deixada no corpo. Esse processo dá origem aos quatro dípticos que compõem A flor de piel, a obra que apresentou à competição da bienal têxtil vimaranense. Ao contrário da brincadeira infantil, o bordado da mão do artista não se fica só pela camada superficial da pele. Há marcas mais profundas que ficam registadas nas imagens de David Catá. E também na carne, onde, por vezes, permanecem traços ensanguentados.

Há sangue na Contextile 2014. Mas também há saliva, a de April Dauscha. O esforço em que a artista norte-americana coloca a sua língua fá-la salivar no extremo do pequeno véu com que está coberta. Essa peça de tecido remete para as rendas usadas pelas mulheres sobre a cabeça nos rituais da igreja católica; a mulher, os rituais e o corpo são referências comuns no trabalho de Dauscha.

Estamos perante um acto de “penitência e mortificação”, como é referido pela artista. O vídeo de três minutos faz parte de Custody of the tongue, a proposta da norte-americana para esta exposição, que é aqui apresentada em formato de díptico. No segundo vídeo, a artista ata a língua demoradamente com um fio branco, que desenrolará no final do processo. É mais uma vez um castigo infligido sobre o corpo e sobre a língua, retratada como instrumento de pecado.

O corpo está muito presente nesta segunda edição da Contextile, ainda que nem todas as obras em exposição levem o seu questionamento tão longe como Catá ou Dauscha. “O têxtil está fundamentalmente associado à vida das pessoas. Seja o vestuário, para cobrir, ou o têxtil para o lar, para nos proteger à noite”, afirma Joaquim Pinheiro, da organização da bienal vimaranense, tentando explicar esta convergência não foi premeditada. Os participantes tiveram total liberdade para propor os trabalhos a apresentar, mas a coincidência temática acabou por redundar numa coerência nem sempre comum neste tipo de competições. Mas a exposição internacional não é o único acontecimento da Contextile, que regressa a Guimarães dois anos depois da estreia em 2012, integrada na Capital Europeia da Cultura, e pode ser visitada até 11 de Outubro em vários espaços da cidade.

Os usos do corpo levados ao extremo voltam a estar presentes na mostra internacional em obras como Teei, da portuguesa Marina Sales – uma série de quatro fotografias que documentam a forma como a artista tece uma peça de lã usando as pernas como suporte, ao jeito de um tear – ou Hydrangea, de Jenine Shereos, uma delicada peça, apresentada dentro de uma caixa de madeira e vidro de dez centímetros, onde a artista colocou uma flor tecida com cabelo humano. Shereos é uma das cinco representantes dos EUA, que têm a comitiva mais forte da bienal  (há artistas de 34 países na exposição competitiva da Contextile). As artistas norte-americanas receberam duas das quatro menções honrosas atribuídas pelo júri: uma para o díptico em vídeo de April Dauscha e outra para 100 drops, uma peça suspensa, feita em crina de cavalo branco e fio de nylon, por Amanda Sahn, a cuja beleza a montagem da exposição não faz jus.

Os outros dois prémios foram entregues a artistas do Leste da Europa. Para Moreni, um mapa da cidade-natal da artista romena Elena Brebenel, construído a partir de camadas de tecido e envelopes bordados à mão, abordando a nova geografia de uma cidade sobre uma jazida de petróleo. E In retro, uma composição em papel retirado de volumes do calendário litúrgico Brevarium Romanum, que foi depois cortado, torcido e entrelaçado por Livia Pápai, da Hungria.

Mas o principal galardão da Contextile, o prémio de aquisição patrocinado pela Câmara de Guimarães, foi para uma artista da América Latina. Naturaleza desboblada, uma obra de Miriam Medrez (México), recorda formas naturais e padrões, numa peça escultórica feita com tecido macio e linhas a que uma estrutura metálica dá forma. A criadora mexicana foi escolhida entre os 50 artistas desta exposição competitiva, menos 30 do que na primeira edição – o que obrigou a uma selecção mais apertada, atendendo a que houve um aumento de 15% no número de propostas a concurso, totalizando 263 peças.

 

Recolocar o têxtil

O corpo humano é também o elemento essencial da mostra colectiva de artistas da Lituânia, um dos países convidados desta edição da Contextile, juntamente com a Estónia e a Espanha – cada um apresenta em Guimarães, também na Casa da Memória, uma selecção de dez obras de artistas nacionais. 

Visitar todas as exposições da Contextile é um convite a um verdadeiro passeio pelos novos espaços cultuais vimaranenses. A poucos metros da Casa da Memória, também na avenida Conde de Margaride, a Plataforma das Artes e da Criatividade mostra os resultados da residência artística de Sindy Steitler (EUA) com as artesãs do bordado tradicional de Guimarães. No bairro de Couros, o Instituto do Design recebe Emergências, com obras de alunos da faculdade de Belas-Artes do Porto e das escolas artísticas Soares dos Reis (Porto) e António Arroio (Lisboa), em resposta ao repto da Contextile para recolocar o têxtil como meio e forma de expressão dos jovens artistas nacionais.

No centro histórico da cidade, uma extensão do Museu Alberto Sampaio – o Palacete de S. Tiago, cuja inauguração se fez precisamente com esta Contextile – recebe Fiber Futures, um dos pontos alto dos programa deste ano: 35 obras de artistas que japoneses são pioneiros na criação de arte com as chamadas “fibras do futuro”, usando, por exemplo, pasta de papel ou fibras sintéticas, mas também cânhamo ou cortiça. A escolha das peças foi feita pela International Textile Network Japan e a passagem por Guimarães está integrada numa itinerância internacional começada em 2011, e que se estende até ao próximo ano, com passagens por museus de São Francisco, Paris e Madrid, por exemplo.

Este percurso fica completo no Paço dos Duques, para conhecer a obra de Margarida Reis, Em busca do silêncio, um dos trabalhos mais marcantes da histórica artista portuguesa, que partiu da tapeçaria tradicional antes de se fixar como criadora contemporânea. Esta exposição tem um lugar particular no projecto da bienal de Guimarães. Joaquim Pinheiro resume-o: “É isto que é a Contextile: pegar nas várias formas de expressão têxtil, desde as mais tradicionais, e coloca-las num contexto da arte contemporânea”.

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