O amor regressa das trevas

Dois discos ali na fronteira do pindérico, feitos por um misterioso playboy dos anos 1980 que aparentemente vivia de truques na bolsa, constituem dos mais preciosos objectos de sedução musical deste 2014.

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Até há pouco tempo, esta era a única imagem conhecida de Lewis; o fotógrafo contou que se encontrou com o músico em Los Angeles e que a experiência não foi propriamente boa ED COLVER
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Lewis, aliás Randall Wulf, vive actualmente no Canadá e apesar de autorizar as reedições não quer o dinheiro que elas possam dar

É para isto que vivemos, é isto que faz sonhar cada tolinho da música, e que se dane se estamos a ser enganados, porque não há nada melhor do que um bom naco de música acompanhado de uma história misteriosa que só engrandece o tesouro. Falamos disto: a maravilhosa Light In The Attic acaba de reeditar um par de discos de um autor até agora desconhecido, Lewis.

O ruído à volta de Lewis começou a adensar-se aquando do lançamento em CD de L'Amour, que se supõe ser o seu primeiro disco, e em cuja capa figura, muito apropriadamente, um homem com a pala a cair-lhe sob a testa, de queixo forte, olhar enigmático, os ombros à mostra insinuando nudez, isto tudo num preto e branco com escasso contraste que irradia languidez. Imediatamente imaginamos tratar-se de um gigolo da década de 80 (ideia que ganha corpo quando vemos a fatiota branca com que surge no seu segundo disco, Romantic Times, igualmente acabado de reeditar), de alguém que vive a noite entre copos, drogas e mulheres, e o som adensa a ideia: ocasionais dedilhados, uma ou outra nota de piano percutida com um dedo apenas (como se fosse tocado por um aspirante a pianista de bar lounge), enquanto um sintetizador volteia uma voz de crooner falhado.

O som é já de si enigmático e viciante, a bordejar o lamechas – felizmente para nós e para ele, acaba por ser salvo pelas melodias. Entretanto, as teorias que abundam desde que L'Amour foi reeditado, numa altura em que não se sabia ainda quem era Lewis, vieram obviamente espicaçar a curiosidade. Houve quem afirmasse que o álbum podia muito bem ter sido gravado por acaso: não seria de estranhar se se viesse a saber que um qualquer anónimo – já avançado em álcool e com a cocaína a descer-lhe no sangue – se sentara ao piano de um bar de má fama em L.A. – como os que Tom Waits frequentava – e improvisara umas cantigas com o par de músicos que por ali andavam. Outros, porém, defenderam que o disco não podia ser de 1983, como a Light In The Attic afirma (e como consta da contracapa). As teorias da conspiração apontavam no sentido de todo o fenómeno Lewis constituir um embuste: a editora teria inventado este disco perdido, que na realidade esconderia um qualquer escritor de canções actual.

A verdade é ainda mais rocambolesca. Na capa do LP figura apenas o nome Lewis; o verso escassa informação traz. Mas foi mesmo este enigmático objecto que o coleccionador John Murphy encontrou numa feira da ladra por um dólar, em 2008. Murphy encontrou depois uma segunda cópia e passou-a ao amigo Aaron Levin, que gere o blogue Weird Canada e que pôs o disco on-line; desde então, o interesse por L'Amour cresceu ao ponto de o preço dos vinis chegar a atingir 600 dólares no eBay.

Um playboy sob influência

Quando a Light In The Attic decidiu reeditar L'Amour – criando um fenómeno semelhante ao acontecido com outro mistério recente, o caso Rodriguez –, tentou saber mais sobre este Lewis. A editora começou por dirigir-se ao fotógrafo creditado no LP, Ed Colver, que à data trabalhava acima de tudo com bandas punk e contou que a sessão se passou em Los Angeles e que Lewis se chamava na verdade Randall Wulf. A experiência com Wulf, percebeu-se também, não fora boa: era uma espécie de playboy, um provável vigarista que vivia então no Beverly Hills Hotel, guiava um grande carro branco e namorava o que parecia ser uma modelo.

Wulf passou um cheque de 250 dólares pela sessão, mas quando Colver o quis levantar descobriu que a conta onde estaria o dinheiro – de um banco em Malibu – fora encerrada. De volta ao hotel à procura de Lewis, Colver deu com os burrinhos na água: o homem desaparecera, talvez para o Havai, talvez para uma qualquer outra zona tropical.

Para deslindar este mistério, a Light In The Attica contratou o escritor Jack Fleischer e um detective. Juntos conseguiram descobrir que Lewis gravara também alguns discos na Europa, que muito provavelmente nunca viram a luz do dia. É muito possível que nenhum dos seus álbuns alguma vez tenha tido edição comercial – pelo menos não existe informação acerca da editora dos dois primeiros álbuns.

Lentamente, os espiões da Light in The Attic foram descobrindo que Wulf usava uma série de pseudónimos a cada gravação; constou que se mudara para Vancouver, no Canadá, e que guiava um Porsche. A imagem de playboy não andava muito longe da realidade: Wulf passara uma parte da sua vida a jogar na bolsa e a lidar com investimentos, sendo que há uma aura de charlatanice à volta dos seus negócios que Fleischer prefere não revelar: “Talvez seja exagerado chamar-lhe con-artist [charlatão]”, diz.

Os discos seriam então uma parte dessa vida de playboy. O engenheiro de som creditado no LP recorda pouco do trabalho em estúdio, mas tem a vaga impressão de que Lewis estava “under the influence”, isto é, bêbado ou drogado. Maravilhosamente, tudo isto faz ainda mais sentido se acreditarmos na palavra do sobrinho de Wulf, que afirma que os discos que o tio fez de seguida eram de “soft religious music”.

Um segundo disco – não tão bom quanto o primeiro – da era Los Angeles, Romantic Times, foi entretanto encontrado e acabado de reeditar. Na capa vemos Lewis, de fatiota branca com flor na lapela, junto ao tal grande carro e a um avião particular.

A demanda pela identidade do misterioso autor continuou, até que a Light In The Attic recebeu uma dica de um músico canadiano: Lewis estaria mesmo a viver no Canadá. Encontro marcado e melhor era impossível: a fotografia que imortaliza o momento é uma delícia. Wulf de camisa branca aberta, fio de ouro com uma cruz de Cristo a pender no peito, calções e ténis brancos, uma cópia da edição em CD de L'Amour numa mão, uma bengala na outra (fora atropelado recentemente). Mais espantoso ainda: embora as tenha autorizado, Wulf prefere não ter nada a ver com as reedições, não quer (ou não precisa) do dinheiro.

Estaremos todos a ser enganados? Difícil dizer. Mas que importa isso quando há uma canção como Like to see you again, de L'Amour: umas pinceladas de piano, um órgão atmosférico e aquela voz frágil que nunca se alteia a cantar sempre como se estivesse a falar ao ouvido de uma garota. L'Amour está cheio disto: I thought the world of you, canção extraordinária, leva a fórmula quase ao extremo, como se Brian Eno e Nick Drake se tivessem embebedado e criado uma dezena de canções de amor inacabadas. Romantic Times é semelhante, mas há menos melodias memoráveis. É o tipo de álbum a pôr quando se está numa chaise-longue, à varanda, com um martini na mão.

Se for cambalacho, é um óptimo cambalacho. E mesmo que não seja, já nos valeu uma dezena de grandes canções. <_o3a_p>

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