Manual do capitalismo português

Portugal está sempre a esbarrar com o nariz na qualidade das suas elites, que por mais St. Julian’s que frequentem, parecem não aprender nada de nada.

A notícia de que o Montepio Geral tinha até há pouco nas suas contas empréstimos de dois mil milhões de euros sem garantias é mais um bom exemplo das perigosas originalidades do capitalismo português.

Francisco Sarsfield Cabral chamou-lhe recentemente um “capitalismo sem capital”, atribuindo essa característica à forma como a banca foi nacionalizada no pós-25 de Abril e ao facto de os grupos que a detinham nunca terem sido devidamente indemnizados. Quando chegou a hora de recomprar o seu antigo património, por altura das privatizações, grupos com o Espírito Santo tiveram de se endividar significativamente, vivendo desde então mergulhados numa cascata de dívida.

Sem dúvida que essa cascata é em boa parte responsável pelo extraordinário nível de endividamento privado em Portugal. Ainda recentemente, a OCDE mostrou grande preocupação não com a dívida pública portuguesa, mas com a dívida privada, que por esta altura já se deverá situar em números próximos do dobro da pública (bem acima dos 200% do PIB, portanto). É possível que nos últimos anos tenhamos andado com a atenção virada para o local errado – em boa verdade, uma queixa recorrente da esquerda –, mas a originalidade do capitalismo português não tem só a ver com a ausência de capital. Tem em grande parte a ver com a forma desvairada como ele foi sendo colocado na mão de trafulhas e incompetentes.

Deixemos de lado os trafulhas, e por uma vez centremo-nos nos incompetentes. Como poderá confirmar quem algum dia tenha tentado lançar a sua própria empresa, a grande diferença entre o Zé Santos e o Zezinho Espírito Santo não está na qualidade do seu projecto, no brilhantismo das suas ideias ou na eficácia da sua equipa – está na facilidade de acesso ao crédito. Ao Zé, o banco exige infindáveis garantias, juros monstruosos, património e fiadores. Ao Zezinho, o banco exige que a ideia pareça fixe. E toma lá o dinheiro, sem demasiadas chatices, porque o pai é companheiro de caçadas e o irmão colega do filho no St. Julian’s, e se o negócio for um dia parar à coluna das imparidades, enfim, é aborrecido, mas acontece.

Já se o negócio acabar por se revelar promissor, o Zezinho vai então ter com o seu amigo administrador do banco de investimento que deu uma ajuda na concessão do crédito e oferece-lhe uma parte do negócio: “Toma lá 20% pelo jeito que me fizeste e, já agora, se puderes continuar a manter a torneira aberta para podermos crescer, toda a gente ganha: eu, tu e o banco.” Dir-me-ão: mas um administrador de um banco pode conceder crédito a um negócio que também é seu? Não pode, claro. Mas foi para isso que se inventaram as offshores, não é? É só criar uma empresa numa ilha qualquer do Pacífico, arranjar uma advogada simpática como testa de ferro, e ninguém tem de saber. Então se todos ganham…

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Todos ganham, claro está, até ao momento em que a cascata já tem tantos trafulhas e incompetentes de boca escancarada que a água deixa de chegar para todos. Dos trafulhas, é suposto tratar a polícia (a ver se é desta), mas é possível que sejam os incompetentes a desgraçar-nos mais – a quantidade de crédito desbaratado em maus projectos, em péssimos negócios e em gestores absolutamente incompetentes tem de ser homérica. Se os gestores fossem bons, a facilidade em conceder crédito até poderia ser uma vantagem. Mas não são, e por isso Portugal está sempre a esbarrar com o nariz na qualidade das suas elites, que por mais St. Julian’s que frequentem, parecem não aprender nada de nada.

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