O milagre de Tiger Man num festival que quer conquistar pelo prazer

Em fase de afirmação, a 2.ª edição do Fusing, na Figueira da Foz, trouxe uma mão-cheia de grandes concertos e reforçou a aposta num festival que não quer ser como os outros. No Fusing, há praia, comida, desporto e uma arte urbana que salta para lá do recinto.

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Ao lado de uma pintura mural em que só conseguimos ver um Estaline chifrudo, Rafael Polónia e Tanya Ruivo partilham imagens e histórias de uma viagem de 19 meses que fizeram montados em bicicletas entre Ovar e Macau. Primeiro, contaram a toda a gente de que se lembraram esse seu propósito e afixaram cartazes anunciando a partida. O objectivo era comprometerem-se com a viagem que tinham idealizado. Estarem de tal forma metidos até ao pescoço antes sequer da partida que o falhanço passaria sempre por uma pequena humilhação pública. Um esquema de motivação, portanto. Mas que se espelha repentinamente naquilo que se passa no Fusing, festival na sua 2.ª edição na Figueira da Foz, terminado domingo: passar da conversa de café e das intenções à acção, sem medo de o passo parecer maior do que a perna e insistir nisso.

Um festival que junta música, gastronomia, arte urbana e desporto num só pacote pode soar demasiado disperso para que o conceito faça sentido. Mas, apesar de serem ainda necessários muitos acertos nesta identidade que ainda se vai formando, resulta. E resulta pelo simples facto de ter acontecido já por duas ocasiões, levado milhares de pessoas até à Figueira – e não era preciso grande esforço para descobrir público e músicos para quem esta era a sua primeira visita à cidade da Costa da Prata – e arriscado um festival que quer ser diferente dos demais, lutando por um impacto que se estenda para lá do regional. Tal como a viagem de Rafael e Tanya – apresentada na Garagem das Artes –, o Fusing é, em certa medida, uma descoberta permanente do que fazer com estes vectores. No caso dos viajantes, deram por si levados para a casa de um casal francês que os recebeu com mordomias de golfe e jacuzzi ou foram avisados de que no Paquistão as portas de cada casa se abriam numa hospitalidade desmedida assim que tiravam do bolso um papel onde um rapaz lhes rabiscara “Somos convidados”. A próxima esquina era sempre uma incógnita.

Por isso, o Fusing pensa-se igualmente para lá dos tapumes que delimitam este espaço dedicado à convivência de diferentes áreas temáticas junto ao Forte de Santa Catarina, ali onde o Mondego esbarra no Atlântico, e com direito a uma praia privativa durante estes dias. Não são apenas as aulas de surf, body board ou caiaque na Praia do Cabedelo, mas sobretudo o rasto que o festival vai deixando na cidade, com obras de arte urbana subitamente a animar prédios de cores desmaiadas e/ou degradados. Durante os dias desta 2.ª edição, por exemplo, a artista plástica Tamara Alves calcorreou as ruas da terra perguntando que portas podia habitar com as suas pinturas de seres efabulados, fantásticos, algo góticos. E não foram assim tão poucos os sins que recebeu pelo caminho.

Nesta teia de actividades, aquilo que se vai formando é a noção não apenas de juntar áreas que fazem sentido num entretenimento fixado numa zona de veraneio, mas também numa conjugação de prazeres e de aprendizagens que ultrapassam o modelo mais formal e convencional dos festivais de música. A comida não é apenas uma inevitabilidade comercial e uma necessidade alimentar para quem ali passa várias horas, mas também uma desculpa para ocupar o espaço com workshops de cocktails, sushi, cozinha saudável para pais e filhos ou cozinha molecular, assim como palco para as batalhas Chef vs. Chef, que capitalizam a popularidade dos concursos televisivos em torno da culinária, em animadas contendas entre diferentes tradições gastronómicas. Apesar de problemas de som que boicotaram parte desta iniciativa, deu para perceber como o combate entre Justa Nobre e Peixoto foi alimentado pela chef com constantes provocações, bastamente apimentadas, citando inclusivamente o Pequeno Saul a pretexto de uma cataplana de bacalhau.

Aqui, a par de uma exposição de discos de vinil ou uma demonstração de scratching por X-Acto, figura de referência no mundo do hip-hop e que explicou e deu a ouvir as técnicas que fazem parte desta linguagem – nomeadamente através da utilização de um samples mais repetidos na história do hip-hop, o solo de Funky Drummer, tema de James Brown –ou da apresentação dos videoclipes de Vasco Mendes, há gente lá ao fundo estendida na praia. Tudo isto contribui para que neste festival de escala saudável, onde a deslocação entre um espaço e outro se faz sem dificuldades e os concertos se vêem sem acotovelamentos, impere um clima instalado de férias e lazer.

Portugueses esmagadores

Pelas escolhas musicais do Fusing passa igualmente uma certa especificidade, ao privilegiar em absoluto a música portuguesa, da facção menos mainstream. Isso mesmo notaria Capicua, acentuando a contradição da letra de A Última, onde numa visitação ao seu percurso de rapper acusa que “até chega a ser boicote / em festivais não é suposto / só toca banda de rock”. E mais: “nesta lua-de-mel da música portuguesa (…) excluem os MCs”. O mesmo seria ressalvado por David Santos (Noiserv e You Can’t Win, Charlie Brown), que agradeceria em palco à organização, por saber que este modelo até pode complicar as contas das finanças e convocar menos gente, numa manifestação de apreço por um cartaz é esmagadoramente composto por músicos portugueses e que não é pensado para aquele efeito fácil em que as bandas são enxertadas não cartaz só para fazer número.

A Capicua coube a actuação mais bem-sucedida da noite inaugural, convidando a uma viagem que a acompanhamos à sua infância quando cresceu “a ouvir Zé Mário [Branco]” (e que vai bater em cheio na sua primeira rima à porta do infantário), numa travessia do Tejo num cacilheiro que abastece as profissões de rés-do-chão da capital e nota que “até Cristo virou costas ao Sul”, na subjugação pelo medo ou no feminismo esclarecido de Maria Capaz. Tudo até chegar a Vayorken ou apanhar boleia de José Afonso para lembrar que as pedras da calçada deste Portugal já secaram as lágrimas de tanto chorar e começam a ser atiradas. Zeca seria também figura tutelar da actuação de Fachada no último dia, fornecendo as pistas seguidas por Fachada nesta sua via de encher as canções de África.

O arranque do festival traria ainda as recompensas de uns Sensible Soccers que são já um caso sério de gente que faz pensar nuns Animal Collective se nascidos em Düsseldorf, mas que está já num plano criativo dificilmente explicável e equiparável, assim como uns White Haus que funcionam como viagem patrocinada ao disco-funk nova-iorquino e uns You Can’t Win, Charlie Brown promotores de uma pequena festa de folk permeável ao psicadelismo.

Pelo meio, uma magnífica esfrega rock. Capitão Fausto e Peixe : Avião assinaram dois concertos soberbos. Os Capitão Fausto são cada vez mais um portento de rock psicadélico em que cabem os Beatles, os Flaming Lips ou os Tame Impala, mais uma gama de riffs sacudidos sabiamente sacados aos Franz Ferdinand, enquanto os Peixe : Avião embarcam numa tensão que produz temas permanentemente no campo gravitacional das canções, mas enchendo-os de minudências electrónicas, mais teclados e guitarras roídos de obsessão e aplicados sobre uma secção rítmica cerrada. A voz de Ronaldo Fonseca, por seu lado, soa a um fio de melodia que consegue atravessar esta muralha de som.

Numa das raras excepções, a segunda noite permitiria ainda a presença brasileira de Cícero, cantor/compositor brasileiro que deixa atrás de si todo um charme discreto de bonitas canções descomplicadas. A verdadeira euforia, no entanto, chegou no sábado, dia derradeiro do Fusing e mais visitado, quando, nas palavras de Hélio Morais, Legendary Tiger Man  foi aquele que “fez como Moisés: separou as águas e deixou entrar pessoal aqui para a frente”, encurtando a pouco habitual e indesejável distância cavada pelo fosso para os fotógrafos. Ao vivo, Furtado promove um banquete rock’n’roll repartido com a bateria de Paulo Segadães e o saxofone de João Cabrita. Mantendo intacta a aspereza da música, dá-lhe mais corpo, músculo e nervo. E chama ainda ao palco os Dead Combo, para o clássico punk Teenage Kicks,dos Undertones, lembrando que este Tiger Man é progressivamente menos solitário sem perder as suas qualidades assanhadas de animal ferido.

Quanto aos Dead Combo são saudados como heróis de uma certa identidade nacional porosa em que todos se querem reconhecer e ser personagens, dada a criação de um mundo irrepetível em qualquer outro idioma musical. O mesmo apetece dizer dos Paus, enquanto viciante e agitadora música torrencial, uma energia bruta deixada à solta e frases cantadas como slogans para entoar em coro, ao mesmo tempo que rolavam skates abalançados pela música. O Fusing, à falta de melhor definição, é isto. Quando parece que não tem a ver, afinal até tem.

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