Uruguai e EUA podem funcionar como “laboratório” para o resto do mundo

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"Têm sido produzidos produtos de cannabis com uma potência psicotrópica masi elevada do que era tradicional", avisa João Goulão Manuel Roberto

Em menos de um ano o mercado mundial de cannabis agitou-se com dois países a fazerem história: o Uruguai, que no final de 2013 se tornou no primeiro país do mundo a anunciar a legalização da produção, distribuição e venda desta droga, e os Estados Unidos que em Janeiro tornaram o Colorado no primeiro estado a tornar legal a venda de cannabis para fins recreativos, sabendo-se já que outros vão seguir os mesmos passos.

O presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão, descreve estas duas experiências como “verdadeiros laboratórios vivos” cuja informação deve ser acompanhada para “perceber os efeitos na saúde pública”. Mas é peremptório a afastar a possibilidade destas mudanças virem a ter efeitos na actual legislação portuguesa.

Para João Goulão, que também preside ao Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, a atitude europeia deve ser sobretudo de atenção e análise. Questionado sobre se os movimentos no sentido da liberalização poderão ter repercussões em países como Portugal e que efeitos se pode esperar numa altura em que esta droga continua a reunir um elevado número de consumidores, o responsável reitera que “o quadro legal existente em Portugal é adequado à nossa realidade” pelo que “não advoga nenhuma alteração”, até pelas diferenças culturais. E mesmo em termos europeus recorda que países como a Holanda têm dado alguns passos mais proteccionistas.

A cannabis é a droga mais consumida no mundo. Estima-se que, na Europa, mais de 77 milhões de adultos já a tenham experimentado, o que significa mais de 20% da população adulta, de acordo com o relatório do Observatório da Droga e da Toxicodependência de 2013. Em Portugal, as estatísticas apontam para uma prevalência de mais de 9% nos adultos. Há cerca de 15,4 milhões de jovens europeus que consomem cannabis regularmente, ou seja, utilizaram a droga pelo menos vinte vezes no último mês.

Concretamente sobre os efeitos negativos das medidas no aumento do número de toxicodependentes e problemas relacionados com o consumo – que estão no topo das críticas feitas pelas correntes mais conservadoras nos EUA –, Goulão lembra que “Portugal esteve na mira e foi atentamente observado por países de todo o mundo relativamente às consequências da decisão da descriminalização que seguiu” e “olhando para trás vemos que foi uma experiência bem-sucedida”.

O presidente do SICAD refere-se à descriminalização que Portugal fez em 2001 da posse de cannabis, cocaína, heroína e metanfetaminas para consumo próprio, tendo passado a considerar o toxicodependente como doente e substituído a pena de prisão com a possibilidade de o infractor ser encaminhando para uma Comissão de Dissuasão e para tratamento. Foi ainda em 1998 que José Sócrates, na altura ministro adjunto do primeiro-ministro António Guterres, lançou uma política integrada para a toxicodependência, que apostava na redução de riscos. E o Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências 2013-2020, que agora está a ser ultimado com um ano de atraso, também segue a mesma estratégia mas vai centrar-se nos vários ciclos de vida para tentar reduzir os consumos.

Só que a socióloga Susana Henriques, docente da Universidade Aberta e investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, alerta que, “no contexto globalizado das sociedades actuais, é natural que as políticas tenham impactos muito para além da sua origem”. Além disso, sublinha que o mercado da cannabis não é imune aos lobbys e desmonta o argumento norte-americano de uma fatia dos impostos conseguidos com a venda de droga ser aplicada em sectores como o da educação, classificando-o como “pouco consistente”, já que não são investidas “apenas as receitas resultantes da tributação destas substâncias”. O lobby que se alimenta da cannabis foi, aliás, tema de um artigo do El País de 5 de Junho de 2014, no qual alguns analistas admitiam que mesmo a indústria tabaqueira vê grandes atractivos no negócio como forma de expandir a sua actividade.

Neste campo João Goulão também reconhece que tem faltado alguma seriedade na análise do tema, que acaba muitas vezes a servir apenas interesses. “Penso que tem havido uma confusão mais ou menos deliberada na discussão deste tema, entre o uso terapêutico e o uso recreativo de cannabis, sendo que a discussão do uso terapêutico tem sido utilizada como cavalo de Tróia para se poder passar para a legalização do uso recreativo”.

Mas a campanha nos Estados Unidos, ainda que envolta em polémica, tem sido no sentido de que mais locais sigam o exemplo do Colorado. O debate tem sido de tal forma aceso que teve impacto nas páginas dos jornais, não em notícias mas em posições explícitas. O New York Times, por exemplo, no domingo dia 3 de Agosto publicou um anúncio inédito que ocupava uma página inteira e que pertencia a uma empresa ligada à indústria da cannabis. A publicidade mostrava diferentes variantes da cannabis numa espécie de catálogo para o consumidor perceber melhor as diferenças.

O anúncio surgiu no mesmo mês em que Nova Iorque se tornou no 23.º estado do país a legalizar o consumo de cannabis para fins medicinais e surgiu apenas uma semana depois de o mesmo jornal ter publicado um editorial onde defendeu abertamente a legalização da cannabis, argumentando que a proibição desta droga é negativa para a sociedade e dizendo mesmo que é menos prejudicial para quem a consome do que o álcool ou o tabaco. “Os Estados Unidos levaram 13 anos a voltar à razão e a por fim à Lei Seca, 13 anos ao longo dos quais as pessoas continuaram a beber, cidadãos respeitantes da lei tornaram-se criminosos e os sindicatos do crime nasceram e prosperaram. Há mais de 40 anos, o Congresso adoptou a interdição actual da cannabis, infligindo um grande prejuízo á sociedade simplesmente para proibir um produto bem menos perigoso que o álcool”, lia-se no editorial.

É desta “corrente informal de desvalorização dos riscos” que o psiquiatra Pedro Levy antecipa as piores consequências, defendendo o especialista do Hospital de Santa Maria e coordenador do Programa de Intervenção nas Fases Iniciais que pior do que liberalizar os consumos é “o abandono de movimentos de redução do consumo de cannabis e de informação adequada às pessoas”.

Uma crítica que também é feita por Jorge Torgal, professor catedrático de saúde pública da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, que afirma que faltam campanhas direccionadas para o consumo destas drogas, ainda que no seu caso seja favorável ao “fim da criminalização do consumo” e “comercialização em volumes reduzidos” por não acreditar no “caminho da repressão e da interdição”. “De todas as formas é um tema, como outros, que tem alguma clivagem porque bate em princípios e não só em práticas e em dados objectivos”, conclui.

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