Mater dolorosa

Gisberta, de Eduardo Gaspar, está longe de ser perfeito mas é um comovente momento de encontro com uma actriz que usa o seu capital de simpatia para navegar por uma história de dor e horror.

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Existem poucas actrizes como Rita Ribeiro e são cada vez menos os espectáculos que, sustentando-se numa relação empática com os espectadores, saibam transformar essa relação de cumplicidade em algo que seja mais do que um veículo. Gisberta, de Eduardo Gaspar, longe de ser perfeito, é um comovente momento de encontro com alguém que se usa desse capital de simpatia para se atravessar por uma história de dor e horror.

Rita Ribeiro transforma-se na mãe dessa vítima a partir de um relato fictício da mãe da transexual Gisberta, que em 2006 acabaria por morrer no Porto depois de ter sido alvo dos ataques de mais de uma dezena de adolescentes. O rigor da sua interpretação, e o modo como se transforma a partir de gestos mínimos e neles revela a consciente fronteira entre a intimidade e a exposição, recusa um retrato que poderia ser o da sua vitimização e ensaia um outro que tenta compreender o alcance da sua própria culpa.

O texto de Eduardo Gaspar não está, obviamente, ao nível de casos recentes onde a relação filial estruturava um outro tipo de relação, a do confronto entre o Homem e Deus. Contudo, Gisberta dialoga de modo muitíssimo equilibrado com textos como Stabat Mater, de António Tarantino (1993), O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion (2005) e Retour a Reims (2009), de Didier Eribon no modo como consegue evadir-se das armadilhas que o tema poderia causar para se transformar num exercício de contenção sobre a possibilidade de culpa individual.

Ao mesmo tempo que é um texto de denúncia da entrega espiritual, é também um texto de abandono sobre o vazio provocado pelo sentimento de traição a essa mesma entrega, usando a escala da intimidade e da filiação para procurar compreender como se pode viver na ausência de crença e de esperança.

Apenas há a lamentar que a encenação pareça não confiar no seu próprio texto, ao insistir numa omnipresença, tecnicamente mal gerida, de músicas e vídeos que contrariam a contenção pedida à actriz. Do mesmo modo, os excertos da reportagem que o invisível jornalista estaria a fazer pretendem criar um fio narrativo mas não são mais do que um artifício dramatúgico que, pela sua recorrência, criam permanentemente uma sensação de descomprometimento da escuta do espectador e uma distância que, a todos os níveis, Rita Ribeiro procura combater, desafiando o inquérito especulativo através de um olhar que nunca se afasta daqueles para quem realmente se dirige.

É um exercício de expiação porque tenta partilhar a responsabilidade pela memória, recusando que a própria interpretação seja um virtuosismo de actriz. A sua comoção não é retórica dramatúrgica mas sim prova consciente da implicação no resgate daquilo que não deve ser apenas passado. O que esta interpretação nos dá, com uma economia de meios reveladora da versatilidade da actriz, é a responsabilidade de não esquecer a injustiça e dar um passado, e uma realidade, à frieza de um caso de polícia transformado em notícia de jornal.

A interpretação de Rita Ribeiro inscreve-se assim numa galeria de retratos que nos últimos anos, e amiúde, têm sido apresentados em Portugal, arrepiando caminho num panorama onde o culto da juventude se sobrepõe a uma experiência que não é só técnica e onde escasseiam espaços para espectáculos de uma simplicidade desarmante que só pedem a disponibilidade da escuta. Curiosamente, ou talvez nem tanto, tem sido através de monólogos que temos podido ver exercícios de entrega que resgatam à euforia do efeito e da retórica visual um modo de estar em palco que contrasta grandemente com um teatro de exposição.

Ao lado de Maria João Luís (Stabat Mater, 2006, enc. Jorge Silva Melo), Eunice Muñoz (O Ano do Pensamento Mágico, 2009, enc. Diogo Infante), Custódia Gallego (Vulcão, 2010, texto Abel Neves, enc. João Grosso), Manuela Couto (Onde estavas quando criei o mundo?, 2012, texto Artur Ribeiro, enc. João Mota) e Maria José Paschoal (num dos três monólogos de Palácio do fim, 2013, texto Judith Thompson, enc. Pedro Carraca), Rita Ribeiro entra numa galeria de actrizes que recusam transformar-se na personagem para impor uma emoção, preferindo que o primeiro confronto seja entre a narrativa dessa personagem e o percurso que a actriz teve que percorrer para a compreender. E é por isso que, ao recusar transformar-se por inteiro, e de imediato, na personagem, Rita Ribeiro usa a desconfiança da mãe perante o jornalista como método para ganhar a confiança do espectador, como se invertesse o papel de quem quer saber e de quem pode contar.

O que se revela é, afinal, uma interpretação que usa memória relatada como o encontro entre a personagem e a actriz, conquistando a legitimidade que permite a Rita Ribeiro evadir-se de uma imersão no relato e nos confrontar com a realidade crua da mãe de Gisberta.

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