Democracia culta

É hoje pacífico que a cultura transcende as divisões sectoriais, influindo na economia, no emprego, na coesão social, no turismo, no urbanismo. Disso dão conta os grandes documentos estratégicos da União Europeia ou da UNESCO.

No que toca a Portugal, estudos elaborados por economistas desvendaram nos últimos anos os números associados ao sector, praticamente desconhecidos há uma década atrás. Seria um erro crasso subestimar a validade do sector na criação de postos de trabalho e contributo para o PIB. Mas tais análises escondem uma dimensão menos benigna.

Começamos hoje a assistir a um desvirtuar da autonomia e do valor intrínseco da cultura em favor de metas económicas, em nome da sacrossanta competitividade. Esse fenómeno tem levado à conversão forçada dos criadores em gestores. A cultura tende hoje a ser colonizada pela “cultura” empresarial. Os artistas e agentes culturais são obrigados a competir por apoios públicos, a fazerem, no limite, cedências estéticas para obterem dividendos, desmultiplicando-se em ações de diplomacia económica, hoje dita fund-raising. A designação é em si mesma reveladora, em perfeita sintonia com a anglicização da língua-mãe que grassa no nosso meio artístico, gritante nos títulos em inglês com que a eito se baptizam exposições e colóquios, ao mesmo tempo que em discursos e discursatas se proclama a língua portuguesa um dos principais “activos” – como sói dizer-se em economês – do país. O fenómeno já inquietava João de Barros nos idos de 1539, levando-o a escrever que a quem não falecer matéria e engenho para demonstrar sua tenção, em nossa linguagem não lhe falecerão vocábulos”.

Fizeram escola as teorias das incubadoras e ecossistemas criativos, das indústrias criativas e outras etiquetas de bom-tom. Não raro o que lhes subjaz é uma ideologia puramente economicista, que marginaliza ou despreza o valor cultural em detrimento do valor económico e admite deixar o destino da cultura nas mãos dos mercados.

Uma série de nomes sonantes do pensamento europeu fizeram a crítica sistemática da industrialização e mercantilização da cultura. Da Escola de Frankfurt a nomes hoje tão requisitados quanto Bauman e Lipovetsky, passando por Walter Benjamin ou Hannah Arendt, assinalou-se a perda da singularidade da obra de arte em benefício da sua reprodução em série, da sua assimilação a ciclos de produção/consumo que fazem dela uma mercadoria efémera e descartável. É assim que, enquanto o Governo envia a um leilão de duvidosa legalidade 85 quadros de Joan Miró com o fito de arrecadar alguns milhões, as lojas dos museus – inclusive nacionais, onde Miró escasseia – vendem peças de “merchandising” que reproduzem obras do artista catalão, porventura alguma das telas enviadas para a Christie’s. São notícia por estes dias as façanhas de empresas especializadas que fornecem o mercado das lojas de museus com inestimável arsenal de lápis, canecas, porta-chaves, ímanes, chávenas, capas para iPhone e iPad, t-shirts e igualha com que os consumidores ocidentais provam a sua devoção pela arte, pendurando-a nos frigoríficos ou vertendo nela a infusão de cidreira.

A cultura equipa os cidadãos de instrumentos para interpretar a realidade histórico-social nas suas complexidades e subtilezas, e tal equipagem cognitiva não tem tradução monetária. Tal como na Grécia antiga, a cultura, nas suas múltiplas dimensões patrimonial, civilizacional, mítico-simbólica e ontológica, serve de espelho ao homem. Nas representações e criações culturais o homem reconhece-se na sua humanidade, nos seus defeitos e virtudes. Nela se espelham as tensões e paradoxos da democracia no que têm de mais subtil e de inexpugnável. Na definição de António Machado, a cultura é “o diálogo do homem com o seu tempo”; diálogo enquadrado por uma estética, por uma técnica e por uma ética.

A nossa identidade surge fixada, no que tem de fixável, nas representações culturais. Se a arte imita a vida, também a vida imita a arte. A nossa paleta afectiva e mental foi modalizada e enriquecida pelos intérpretes privilegiados da vida: pintores, músicos, cineastas, escritores, encenadores e outros. Servem estes de consciência crítica à cidade: imaginam-lhe futuros, resgatam-lhe valores do passado, testam-na, desafiam-na, aproximam-nos uns dos outros, destruindo preconceitos e gerando tolerância. Na sua maioria não se encontram reféns do imediato, não actuam sob o signo da urgência.

Mas em vários países da União Europeia, sobretudo nos mais fragilizados pela crise, a ideologia reinante parece dizer: “obtenham lucro com a cultura, ou abstenham-se da cultura”. Um pouco por toda a Europa este directório tem ditado o recuo do Estado no apoio à cultura. Todavia, se assumimos a cultura como um bem público essencial, temos de reconhecer que as lógicas do mercado são insuficientes para sustentar uma política cultural. A esquerda democrática europeia libertou a cultura do monopólio das elites. Cabe-lhe agora a responsabilidade de protegê-la dos excessos da lógica empresarial e de salvaguardar a autonomia da criação artística. Alcançada a democratização da cultura há que criar condições para o emergir de uma democracia culta. Será sem dúvida uma democracia mais apta a desmistificar a inevitabilidade do empobrecimento a que nos sujeitam, menos vulnerável ao proselitismo economicista e a simplificações grosseiras da realidade. Escritor, professor, doutorado em Literatura Portuguesa

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