Há óvnis no Fusing: chamam-se Capitão Fausto e Peixe : Avião

Segunda noite de Fusing, mais gente a procurar o festival da Figueira da Foz. Entre hambúrgueres de bacalhau e óvnis diante do palco, a verdadeira incredulidade esteve nos grandes concertos rock de Capitão Fausto e Peixe : Avião.

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Peixe : Avião Fusing
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Capitão Fausto Fusing
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Capitão Fausto Fusing

Podia ser uma alucinação, perfeitamente justificada, aliás, por estarmos embrenhados no psicadelismo desenfreado dos Capitão Fausto. Às tantas, há um pequeno óvni que fica a pairar durante alguns segundos em frente a Tomás Wallenstein, enquanto a sua voz de delírio resgatada um resquício de puto traquina vai cantando Nunca Faço nem Metade. O dito óvni, interpretado num primeiro momento como uma extensão do magnífico catálogo de viagens estratosféricas exibidas pelo quinteto lisboeta, a reluzir graças a lâmpadas verdes e vermelhas, sobrevoa novamente o público e regressa instado pelo chamamento electrónico para junto do dono do telecomando, lá atrás perto da régie. O essencial, no entanto, fica: a realidade estica-se na presença dos Capitão Fausto e passa a acolher sem estranhamento fenómenos que produziriam o pânico ou o delírio generalizado. Delírio, aqui, na segunda noite do Fusing, só mesmo aquele que se avista com absoluto grau de comprovação científica no palco.

Nessa altura, ia já alta a noite e o frio andava à espreita de gente menos precavida para o arrefecimento nocturno da Figueira da Foz. Antes disso, numa jornada mais concorrida do que a véspera, a tarde fora reclamada por outros “palcos” do Fusing. Desde as aulas gratuitas de surf, bodyboard ou kayak logo pela manhã na Praia do Cabedelo e, depois de almoço, na praia privativa do festival, à muito procurada aula para pais e filhos sobre alimentação saudável por Mafalda Pinto Leite ou a original batalha Chef vs. Chef, colocando diferentes tradições gastronómicas a inventar pratos com os mesmos ingredientes e a trocar galhardetes (mais ou menos apimentados) diante do público.

Só que sexta-feira estava verdadeiramente por conta de outro desígnio: o rock feito em português, de personalidade pouco atreita a seguidismos, antes com a segurança da descoberta de um caminho. Capitão Fausto e Peixe : Avião assinaram dois concertos soberbos, em dois movimentos totalmente distintos de expansão. Na verdade, se os Capitão Fausto são explosão, os Peixe : Avião são talvez implosão. E, nos primeiros, o entusiasmo é de tal ordem que os cinco nem conseguem domar a ansiedade e saltam para o palco quando ainda muita gente aproveita ainda para dar uma dentada num hambúrguer de bacalhau (o clássico gastronómico por estas bandas) ou para espreitar os avanços de Gemeniano Cruz e Capitão Neto (outro artista, a mesma patente militar) nas suas pinturas de caveiras e outros motivos em dois kayaks, abrigados na Garagem das Artes. Quer isto dizer que Tomás Wallenstein e restante companhia anteciparam o concerto em dez minutos, quando no outro palco (Experience) os Miura tentavam fazer disparar a corrente com tanta descarga eléctrica patrocinada pelo metal.

O concerto dos Capitão Fausto é cada vez mais um assombro. Um portento de rock psicadélico em que cabem os Beatles, os Flaming Lips ou os Tame Impala, mais uma gama de riffs sacudidos sabiamente sacados aos Franz Ferdinand. No final do primeiro tema já Wallenstein toca com a guitarra a agitar-lhe o corpo freneticamente e a atirá-lo para o chão, enquanto o teclista Francisco Ferreira se passeia de pé em cima do teclado. As liberdades deste rock cego perante limites são uma constante – Nunca Faço nem Metade chega a quase desaparecer rumo ao silêncio num eco longínquo, para logo voltar à sua toada de rebentação; e pouco depois o aniversariante Luís Montenegro (dos Salto) é chamado a assumir o baixo enquanto Domingos, sem instrumento, é apresentado como “o bailarino Mila”. Do início ao fim, um arrebatador concerto de rock em tom de festa, sublimado por canções como Célebre Batalha de Formariz ou Flores do Mal.

A gravidade das canções

Se os Capitão Fausto devolvem o rock a tempos em que tudo parecia possível e a música de guitarras era guiada por uma fome de novos universos, os Peixe : Avião embarcam nessa mesma rota, mas fazendo-o pelo lado de uma contenção e uma tensão que produz canções enviesadamente belas. Terá sido o concerto mais arriscado do palco principal destes dois primeiros dias de Fusing, não assinando por baixo da ideia de festa em palco, antes obrigando o público a suspender as conversas e deixar-se levar por uma música cada vez mais preciosa no seu tratamento sonoro – uma depuração que lembra os Portishead.

Os Peixe : Avião colocam os seus temas permanentemente no campo gravitacional das canções, mas brincam crescentemente com este padrão, enchendo os temas de minudências electrónicas, mais teclados e guitarras roídos de obsessão e aplicados sobre uma secção rítmica cerrada, de uma notável robustez. A voz de RonaldoFonseca, por seu lado, soa cada vez mais a um fio de melodia que consegue atravessar esta muralha de som. Os Peixe : Avião começam a parecer-se apenas a eles mesmos, juntando rock, electrónica e minimalismo alemão numa fórmula em que parece um rio a afluir no seu próprio curso. Quase sempre escurecidos por um jogo de luzes primoroso, em que cinco pilares verticais de fluorescência branca colocam os músicos numa contraluz que apenas adensa o clima misterioso de tudo isto.

Pelo Fusing passaram ainda os Salto, gente fazedora de canções estivais ancoradas num livro de estilo melódico do pop/rock português dos anos 1980, enquanto os Norton argumentaram de forma convincente que continuam a crescer na escrita de canções, sempre com uma forte vinculação na pop britânica – desde os Waterboys aos Foals, com desvio pelos franceses Phoenix. Já nos Nice Weather for Ducks encontrámos a música mais foliona com que o Fusing se cruzou até agora, ainda verde na maturidade, mas igualmente juvenil na energia e nos coros que soam sempre a companheirismo romanceado por Enid Blyton. A jovialidade é a dos Givers, algum do ideário dos Vampire Weekend, mas a frescura é toda deles. As sugestões africanas via Nova Iorque voltariam depois àquele palco de forma bem mais vincada na electrónica abrangente dos Octa Push.

Maioritariamente português, o Fusing acolheu também na noite de sexta-feira o brasileiro Cícero. E foi uma bela horinha no serão, dedicada a um romantismo doce, de quem passou longamente os ouvidos pela obra de Marcelo Camelo, e de quem canta “vamos ver um filme, ter dois filhos / ir ao parque discutir Caetano / planejar bobagens e morrer de rir” (Vagalumes Cegos). Cícero é filho desta gente que é brasileira sem soar a MPB, que cita Caetano nas letras e os Nirvana na música (um pedaço de Dumb), que é menos samba do que Devendra Banhart. Às tantas, músico espanta-se com alguém que lhe pede uma música pelo nome. Emociona-se, retribui com o inédito Isabel e deixa atrás de si todo um charme discreto de bonitas canções descomplicadas. Às tantas, surge um óvni à sua frente. Mas desta vez parece estranho. E não se liga muito.

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