Broadway, o romance da América

O grande romance de Nova Iorque, ou talvez da América, chama-se Broadway e é escrito por cada pessoa que cruza a estrada que une Battery Park, na baixa de Manhattan, à vila de Sleepy Hollow, quase 60 quilómetros depois. Percorremos a via para ver como se está a escrever a cidade actual

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São figuras dormentes. Movem-se como se estivessem paradas. Encostam-se a paredes, sentam-se em bancos e os semblantes não mudam. Os pés pisam o empedrado sem decisão. Esperam? Desistiram? Quem passa na estrada larga, que por breves momentos se estreita, olha-os numa curiosidade que se mistura com a angústia de não saber.

Não são vagabundos. Nada do romantismo ou do desespero das figuras contadas nas páginas de Up in The Old Hotel, de Joseph Mitchell, talvez o melhor cronista de sempre de Nova Iorque, a cidade que resiste a fixar-se. Ele morreu em 1996, aos 87 anos, mas nos últimos 30 quase desistiu da escrita. Talvez a melhor palavra para descrever aquele espaço e aquela gente seja abandono. Passaram muitos quilómetros desde que tudo começou, longe do número um da estrada fundadora que tantos anos depois de ser oficialmente referida, no século XVII, ainda a cidade se chamava Nova Amesterdão, é a mais larga — a melhor — para se entender um país. A Broadway não é um espectáculo de teatros com centro em Times Square onde alguém se pode perder na multidão. É uma via de quase 60 quilómetros que cruza a diferença na cidade recordista de contrastes. Luxo e miséria, ambição e falta dela, transgressão e transacção — muitas culturas que tantas vezes se fecham, tementes a contágios, e outras tantas se mestiçam como se nisso estivesse a verdadeira perdição ou a verdadeira identidade, o que muitas vezes é o mesmo.   


O GPS dá o ponto exacto no atlas: 40º56’29”N 73º51’52”W. Uns metros atrás, uma placa anunciara a entrada em Yonkers, cidade de 200 mil habitantes, população de imigrantes irlandeses, portugueses, árabes, eslavos, judeus, afro-americanos que vivem nas sobras de uma industrialização que começou no início do século XX mas não sobreviveu ao XXI. “Na noite de Harlem não há brancos”, escreveu o americano de origem nigeriana Teju Cole, em Cidade Aberta, talvez o périplo literário mais completo da geografia nova-iorquina deste início de século. Não foi a Yonkers. Seria outro atlas. Mas no dia de Yonkers também não se avistam brancos, apesar de os censos de 2010 indicarem que mais de 55% da população é caucasiana. O segundo grande grupo é dos hispânicos. O que diz então aquela praça do que se passa em Yonkers? O mesmo que se repete por tantas outras da América ou ao longo do coração da Broadway, quilómetros abaixo: há poucos brancos entre os sem-abrigo. Cruzando noites e dias de uma geografia urbana e suburbana de mais de 19 milhões de residentes, talvez não seja precipitado concluir que a pobreza tem cor. Mas há que juntar peças ao puzzle para ter um texto sobre a cidade e sobre a América actual, uma narrativa conjunta que está a ser feita, num eterno work in progress, por descendentes de irlandeses, europeus de Leste e do Sul, árabes, africanos, sul-americanos, asiáticos. Que herdam um percurso iniciado no porto de Nova Iorque, a primeira e maior entrada de imigrantes no país.

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A Broadway não é um espectáculo de algumas dezenas de teatros com centro em Times Square onde alguém se pode perder para sempre na multidão. É uma via de quase 60 quilómetros que cruza a diferença na cidade recordista de contrastes


É bem perto disso que tudo começa. Yonkers é a última paragem antes da grande cidade. Para trás ficaram Hastings-on-Hudson, Dobbs Ferry, Irvingtown, Tarrytown e Sleepy Hollow, onde uma ponte atravessa o Hudson para Nyack, a cidade do pintor Edward Hopper (1882-1967). É uma paisagem de casas de madeira, prédios baixos, hospitais, escolas e templos de muitos credos, mansões milionárias, pequenos hotéis e casas de férias de nova-iorquinos endinheirados. Um sobe-e-desce ao longo de um vale desenhado pelo Hudson por onde seguiram muitos colonos, prolongando o caminho que os índios Wickquasgeck traçaram no bosque de Manhattan antes de chegarem os holandeses, no século XVI. É essa a largueza da Broadway, com a literatura a concentrar-se a Sul, como a população. Como o protagonista de Netherland, de Joseph O’Neill, muitos escritores não imaginam que a Broadway “se estende tanto para Norte”. A literatura esquece as coordenadas de Yonkers e aquelas pessoas, na sua dormência perpétua, continuam encostadas às paredes.


Na literatura, esta é uma história que começa a meio, depois do Bronx, bairro que delimita a cidade, terra do hip-hop e dos grafitti, na fronteira com Manhattan. Cruzam-no mais três quilómetros de Broadway, num cortejo de fachadas ao abandono, gente que espreita por janelas sujas, numa massa marcada pela exclusão e pelo protesto que fala a língua do Caribe, um castelhano que come vogais e arrasta. O cinema adora a paisagem, que tem visto diminuir o crime e sublinhado as marcas judaicas. O Bronx está em recuperação económica, lê-se por toda a parte — imagina-se o que teria sido nos anos 80, fora dos filmes, um imaginário que se estende ao Harlem. Não falta quem confunda o último bairro de Manhattan com o que se lhe segue mais a Norte, sem perceber que há um rio a separar a ilha da terra firme.
Nova Iorque reescreve-se sobre os cadáveres que vai deixando. É o Harlem onde Duke Hellington tocava no Cotton Club, capital da “negritude”, nome de um movimento social e político nos anos 20, contemporâneo do Harlem Renaissance, que deu corpo a uma nova linguagem feita pelos afro-americanos do Midwest e do Sul dos EUA que migraram em massa para Nova Iorque no início do século XX. Toni Morrison descreveu esse ambiente em Jazz (1992). Era quando existiam na cidade mais de 30 mil speakeasies, os clubes onde se bebia álcool em segredo, e persistia um mito recuperado por outro escritor, o nova-iorquino do Bronx E. L. Doctorow. Em Homer & Langley (2009), recria a vida dos irmãos Collyer, dois homens à margem de convenções, incapazes de viver em sociedade, cuja história se cruza com a da cidade na primeira metade do século XX. Uma dança de inadaptados, gangsters e artistas, cromos de uma caderneta com muitos puritanos. A mansão onde viveram e morreram soterrados no lixo que acumularam durante anos foi demolida e deu lugar a um minúsculo jardim no número 2078 da Quinta Avenida, cruzamento com a rua 128. Um dos irmãos tinha uma ambição: “Queria fixar a vida americana de maneira definitiva numa só edição, aquilo a que chamava o jornal Collyer sem data, eternamente actual, o único jornal de que qualquer pessoa necessitaria para o resto da vida.” Morreu vítima desse projecto que nunca completou. Nem ninguém.

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“Na noite de Harlem não há brancos”, escreveu o americano de origem nigeriana, Teju Cole ANDREW BURTON/GETTY IMAGES/AFP

 


O princípio do texto       


Não existe o grande romance de Nova Iorque, como não existe o grande romance da América. Cruzar a estrada ajuda a perceber a permanente reescrita que a cidade exige. J. D. Salinger, Mark Twain, Yeats, Auden, Henry James ajudaram nesse texto colectivo. “O movimento era a essência de Manhattan”, escrevia a galesa Jan Morris em Manhattan 45 sobre o troço mais densamente povoado da “estrada” na euforia do pós-guerra, um tempo de abertura, esplendor, sucesso, dinheiro. Autores mais recentes como Philip Roth, Richard Ford ou Joan Didion também tentaram captar-lhe a essência no que tem de fugaz, permanente ou “ébrio”, como o brilho de que falou o irlandês Brendan Behan quando, num conjunto de textos a que se chamou Nova Iorque, escreveu sobre a maior cidade que se consegue imaginar. Uma cidade mutante onde um dos imutáveis é o traçado da Broadway, transgressor em relação à quadrícula que rege o centro, sobrevivente ao Comissioner’s Plan de 1811. A via que nasce em Bowling Green, o mais antigo parque público de Nova Iorque, no extremo Sul de Manhattan. 


Máquinas e vedações e pó misturam-se com turistas vermelhos do calor e executivos apressados. “Calor: é isso que é para mim uma cidade grande. Basta uma pessoa apear-se do comboio e, à saída da estação, já ele nos bate na cara com toda força. É o calor do trânsito, do ar, das pessoas. O calor da comida e do sexo. O calor dos prédios altos. O calor que se desprende dos túneis subterrâneos e do metropolitano. As cidades estão sempre quinze graus acima de outro local qualquer. O calor ergue-se dos passeios e cai dos céus envenenados. os autocarros exalam calor. O calor emana das multidões de pessoas às compras, dos empregados de escritório. Toda a infra-estrutura se baseia no calor, consome desesperadamente calor e gera ainda mais calor. A morte do universo pelo calor, de que os cientistas tanto gostam de falar, já está em laboração.” O discurso vertiginoso de Murray Jay Siskind em fuga da cidade grande serve a Don DeLillo (Bronx, 1936) para mais um romance-ensaio sobre a alucinação cosmopolita centrada em Nova Iorque. Ruído Branco (1984) situa-se nesse inferno de contradições que habita o citadino, perdido entre o desejo de um lugar sem espaço para o ressentimento e a solidão causada pela “ausência de uma metrópole”. 


É Verão. Esse calor multiplica-se e mói. No Inverno é o frio a mesma vertigem de fuga. Mas o erro é pensar que chegamos e vamos ficar só uns tempos, como refere Rebecca Harris, editora de sucesso, mulher de um galerista também bem sucedido do Soho, no livro Ao Cair da Noite, do norte-americano do Ohio mas rendido a Nova Iorque Michael Cunningham. Quem chega com o objectivo “a prazo” desconhece a capacidade de atracção qua a cidade exerce. Mesmo pelas vias mais perniciosas, ou talvez por elas. “Quem tiver tendência para generalizações, poderá dizer que Nova Iorque insiste na ceifa repetitiva da memória — naquela retrospecção deliberada que tem o efeito de, dizem-nos (...), reduzir a erva alta do passado a dimensões com as quais possamos lidar. Porque a erva continua a crescer, claro”, volta a ler-se em Netherland. E ainda não saímos do ponto zero, ou um, da via que simbolicamente atravessa o país. Mesmo no início de tudo, a cidade recupera do que a fez mudar numa escala para a qual ainda faltam referências. Elas vão-se construíndo. Com a ajuda da música, do cinema, mas mais ainda da literatura, por natureza mais lenta. Parece que os nova-iorquinos voltaram a olhar-se nos olhos e nesse gesto há a mesma urgência de procura que leva a que se entre numa igreja ou se siga o megafone que grita palavras como “salvação” em Yonkers. “Voltou a existir contacto visual”, refere Jay McInerney, autor de Bright Lights, Big City, romance sobre os dias de um cocainómano, fact-checker numa Nova Iorque dominada pelos yuppies que sucumbiu aos ataques terroristas de Setembro de 2001 e foi enterrada com a crise de 2008. Ter-se-á ganho o olhar.

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O Bronx é terra do hip-hop, dos graffiti, dos hispânicos — e foi também a geografia que formou Don DeLillo e a sua visão muito particular do sonho americano MARIO TAMA/AFP


Muitos dos mais de 55 milhões de turistas que todos os anos entram em Nova Iorque perguntam por esse dia de Setembro como se fosse um lugar. Onde é o 9/11? Teju Cole refere essa procura: “O sítio tornara-se uma metonímia do seu próprio desastre.” Mas foi Jonathan Safran Foer (1977), que Joyce Carol Oates anunciou como um dos novos grandes escritores da América, a ficcionar esse espaço-tempo em Extremamente Alto e Incrivelmente Perto, romance de 2005 adaptado ao cinema em 2012 por Stephan Daldry. O 9/11 é o vazio, o sexto grande bairro de Nova Iorque. E “grande bairro” tem aqui o sentido de interrupção.


Oskar Schell é um rapaz de nove anos que perdeu o pai no ataque às Torres Gémeas e tenta recriar a narrativa desse acidente. Nesse exercício, o “sexto bairro” aparece num tempo passado e acrescenta-se aos outros cinco: Manhattan, Queens, Bronx, Brooklyn e Staten Island. A Broadway só não cruza os dois últimos, mas a partir de uma observação à Broadway percebe-se uma dinâmica transformadora. Brooklyn é a nova grande centralidade — para onde se mudam galerias, artistas e intelectuais, onde abrem restaurantes, bares, discotecas. Um bairro que se reconstrói e ganha novo discurso com autores como Jennifer Egan, Meg Wolitzer, Teju Cole, Jhumpa Lahiri, Nicole Krauss, ex-mulher de Safran-Foer, judia como ele, autora dos romances A Casa Grande e A História do Amor — outro nome sublinhado como “a seguir”. Ela está atenta às comunidades judias que primeiro se fixaram na zona de Alphabet City, em East Village, na fronteira com a Houston Street, a norte do Soho, e com a rua 14, a artéria onde outra escritora da América actual, Rachel Kushner, colocou um dos centros do audaz Os Lança-Chamas (2013).”Uma pessoa tem de ir viver para Nova Iorque primeiro para depois se tornar artista do Oeste”, diz um das personagens do livro sobre a dádiva de identidade que se recebe de Nova Iorque.


Na história de Oskar, o Sexto Bairro é uma metáfora como a Broadway tem sido, uma enorme festa ou um tremendo caminho alimentado de bagels, spaghetti e saladas gregas sobre que se atiram confetti. Lugar asfixiante e/ou flutuante, atravessado por um saltador. A aproximação a essa ilha faz-se a partir de East River, o lado oposto do Hudson. No meio está Manhattan, que o saltador atravessa a toda a largura desde os telhados dos edifícios às varandas de apartamentos e escritórios. “Segunda Avenida, Terceira Avenida, Lexington, Park, Madison, Quinta Avenida, Colombus Circle, Amsterdam, Broadway, Sétima, Oitava. Nona, Décima.” Quando ele salta todos os nova-iorquinos sentem-se “capazes de voar”. Será essa a capacidade de atracção de Nova Iorque a que se referem quase todos os escritores que, para o bem ou para o mal, são incapazes de resistir ao apelo da narrativa sempre por contar? A Broadway é larga e longa e nela cabem quase todas as histórias. Vai-se sempre dizendo, como num coro. Lá em cima, do Empire State Building, Oskar descobre que as pessoas não se parecem afinal com formigas. São apenas muito pequenas. Julius está entre elas no romance de Teju Cole. Ele aponta a lupa, como o dominicano Junot Diaz faz com outro Oscar, Wao, o da vida “breve e assombrosa” que o tornou uma celebridade americana. Foi no tempo em que Washington Heights, no extremo Norte da Broadway enquanto a Broadway ainda vai na cidade, se transformou no grande núcleo de dominicanos e porto-riquenhos. São os hispânicos a mudar também o léxico e o sotaque da cidade, um dos mais característicos de toda a América, onde os new-yorkers ainda se dizem new-yawkas, numa mistura livre do inglês europeu que chegava de barco com o dos dialectos africanos que povoaram um território de 790 quilómetros quadrados e quase 8,5 milhões de habitantes (mais de 80% dos quais democratas). Números de Nova Iorque, cidade, em 2012, que fazem dela a mais densamente povoada da América, com 44% de brancos, 25% de negros ou africanos, 29% de hispânicos ou latinos e 12% de asiáticos.

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As comunidades judias que primeiro se fixaram na zona de Alphabet City, na fronteira com a Houston Street, inflitram-se nos livros de Nicole Krauss BO ZAUNDERS/CORBIS


Dispersão


Tudo seria mais fácil se o roteiro seguisse uma direcção. Segue a dispersão do diletante literário num mapa nunca definitivo. Procura-se uma narrativa a partir das narrativas que dela se vão escrevendo, mesmo quando há sítios sobre os quais quase nada se diz. Uma visita à Strand, a maior livraria da cidade, com 18 quilómetros de prateleiras, dá noção dessa hipótese de alguém, também ali, se perder para sempre. A cidade engole. “A visão de grandes grupos de pessoas a descer apressadamente para os subterrâneos foi sempre uma coisa que achei muito estranha, e eu sentia que era toda a Humanidade que estava com pressa, empurrada por uma pulsão de morte antinatural para as catacumbas móveis. À superfície eu estava com milhares de outras pessoas na sua solidão, mais abaixo de terra, ali de pé junto as outros, a empurrar e a ser empurrado para ganhar espaço e poder respirar, todos a reconstituir traumas que não reconhecem, essa solidão intensifica-se.” A solidão partilhada de Julius em Cidade Aberta é comum a todas as estações de metro e de comboio de Nova Iorque, sobretudo de Manhantan, onde a população residente de 1,6 milhões aumenta para 3,9 milhões nos dias úteis. Todos numa ilha que não chega aos 60 quilómetros quadrados. 


Jules Jacobson costumava chegar aos fins-de-semana à Penn Station, a maior estação de comboios de Nova Iorque, entre a Sexta e a Oitava Avenidas, que serve 600 mil passageiros por dia, numa proporção de mil a cada 90 segundos. Eram os anos 80. Havia mais assaltos, mesmo no cruzamento da rua 85 com a Amsterdam Avenue: “um assalto era um ritual de passagem”, ouvia Jules dizer. Em Os Interessantes, romance de Meg Wolitzer, escritora de Brooklyn, é reconstituída uma rotina de gente “normal”, como Jules e os amigos às voltas com as perdas que o tempo traz na voragem da cidade. Como resistir? Como aqueles três homens que vestem de mulher? Estão fora da ficção. Trajam suburbanas de meia idade dos subúrbios dos anos 50. Saia rodada, permanente loira, blush carregado, blusa às flores com laço, meias de licra, sapatos de tacão quase raso. Têm 50, 60 anos, rodam uma sombrinha em dias de sol. Podiam estar a pôr tartes no forno. Apanham o comboio de regresso ao que se imagina cenário de comédia suburbana, após um dia de compras e chá na cidade. Seriam pouco verosímeis num romance, mas só os que nunca apanharam comboio na Penn Station os estranham.


Em Nova Iorque, a normalidade é feita de gente a desafiar convenções, o que pode ser tão assustador quanto risível para quem vê de fora. Edmund White, natural do Ohio, descreve essa experiência na autobiografia City Boy (2009). Para quem adoptou a cidade, como White, ela é o único “porto livre” de todo o continente. “Só em Nova Iorque se pode andar de mãos dadas com alguém do mesmo sexo. Só em Nova Iorque se pode ignorar um rato que se atravessa no caminho.” E segue reconstituindo a vida em Chelsea ou no Lower East Side — pintores, coreógrafos, actores, poetas, músicos, no que descreve como um imenso ferro-velho com aspirações artísticas. Era nos anos 60 e 70. Uma visão retrospectiva de quem se sente urbano de Nova Iorque, com a privacidade que o anonimato pode conferir. Jonathan Franzen falou dessa privacidade como essencial para a definição do indivíduo em Correcções (2001), o romance de uma geração. O livro está na banca de um vendedor de rua, junto a Washington Square, onde a Broadway volta a fazer uma interrupção.


É paragem obrigatória para recuperar tudo o que tem sido escrito sobre aquele lugar. Ainda a Broadway vai no início mas já passou por tanto. Como Gogol em The Namesake (2003), da americana de origem indiana e natural de Londres Jhumpa Lahiri, entramos no cruzamento com a rua 12 sem hora para sair. Mas há muito por andar. Greenwich Village, West Side, East Side. A Broadway vai confundir-se com os 43 teatros que a baptizam como o grande lugar de representação junto a Times Square. Vai subir na escala do dinheiro e da cultura para elites. Abrem-se um e outro livro, volta-se ao mesmo.

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Encontrar Correcções, o romance de Jonathan Franzen, numa banca perto de Washington Square é um acaso feliz LUCAS JACKSON/REUTERS


Julius, a personagem nigeriana do nigeriano Teju Cole, vive no Harlem. Nova Iorque continua, a Broadway também, mas Manhattan, o bairro mais densamente povoado da cidade e da América, e também o do maior rendimento per capita e da maior desigualdade social, termina ali. Para Norte, um desfile de bodegas, diners gregos, pubs irlandeses, anúncios de cerveja polaca. Passam judeus sefarditas. Sucedem-se lavandarias. Igrejas dos Santos do Sétimo Dia e de Nossa Senhora de Fátima. Lojas de conveniência com sineta à porta. Muitos Dunkin’ Donuts, Burgers Kings, e nada de Starbucks. Cruza-se o Bronx, sai-se da cidade. New York City já não é ali, mas o estado ainda é o de Nova Iorque, e o percurso segue alinhado com o rio Hudson. É outra vez Yonkers. Há muito que passámos Little Italy, Chinatown. Há frases e ideias. A de que os nova-iorquinos são fascinados pelos ricos, e outro eco: “Ocorreram alguns episódios de insanidade periférica.” É de Patrick McGrath, no seu Nova Iorque Cidade Fantasma.

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