O paradoxo que mata

John le Carré, então ainda muito próximo da sua carreira como espião, mostra que é capaz de enredar infinitamente um plot.

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Ao arrepio da opinião generalizada, a mais velha profissão do mundo é, isso sim, a espionagem, uma actividade com raízes tão profundas nas sociedades mais - e menos - civilizadas que adquiriu, há muito, uma legitimação e, inclusive, um cunho “romântico”.

Seja em nome do amor pátrio, da ganância, do desejo de suplantar o outro ou de políticas mais ou menos paranóicas, esta sombria e por vezes mortífera actividade germina e desenvolve-se à conta de suspeitas, traições e manipulações, sempre tão caras aos seres humanos. Nos seus romances, John le Carré movimenta-se nessas águas turbulentas e, em O Ilustre Colegial (1977), em que desenvolve uma das tramas mais intrincadas e confusas dedicadas a este tema, revela como uma história pode tornar-se caótica e fora de controlo, ao sacrificar a coesão narrativa e a unidade da acção em prol da fragmentação que reflecte, afinal, as convulsões que ocorrem no território minado das tensões políticas, bem como no íntimo das personagens. O mestre das tramas mostra aqui que é capaz de enredar infinitamente um plot, tal como acontece nas perigosas movimentações do “grande jogo” que, por esta altura, estava ainda demasiado próximo da actividade em ele próprio participou, ao serviço do MI5 e do MI6. Passados mais de 50 anos, le Carré pode reiterar acaloradamente a afirmação de que é apenas um romancista e de que a espionagem foi um “acidente”, mas, neste e noutros livros, os seus heróis possuem o cunho dos aventureiros estreitamente ligados aos serviços de informação, com os seus tiques, o seu jargão e, evidentemente, as suas paranóias — desconfiar de tudo e de todos, vigiar a própria sombra, viver como se não houvesse amanhã e quebrar todas as regras sempre que necessário.
O Ilustre Colegial

, segundo romance da 

Trilogia de Karla

, (nome de código do controlador soviético do KGB e “nemésis” de George Smiley, o operacional inglês), é bastante diferente do anterior 

Tinker, Tailor, Soldier, Spy

 (1974), obra que surgiu como uma espécie de catarse na ressaca dos escândalos que envolveram (nos anos 50 e 60) os célebres Cinco de Cambridge, Guy Burgess, Donald Maclean, Anthony Blunt, John Cairncross e Kim Philby, que desertaram para a então União Soviética. Smiley, o sorumbático, atormentado e “prufrockiano” agente que pretende ter deixado para trás a época mais agitada da sua vida mas que é constantemente chamado para resolver novas e cada vez mais inglórias situações, prefigura-se como uma das personagens mais complexas do autor, aquela que assombra os seus livros desde 1961, quando emergiu em 

Call for the Dead

. Neste romance, encontramo-lo já aposentado, embora continue a investigar a incompetência dos seus antigos patrões, bem como as traições e os desmandos daqueles que continuam em funções. Chamado a ocupar, interinamente, a chefia dos serviços de espionagem — o chamado Circo — a partir de um minúsculo escritório em Londres, os seus dotes de super-espião são postos à prova, não como agente mas como director, estendendo os seus tentáculos tão longe quanto a base de Hong-Kong (“um rochedo britânico gerido por uma mão cheia de comerciantes de pescoço avermelhado”) num esforço melancólico para resolver o insolúvel, colocar ordem no caos e “olear” eficazmente as operações, num momento histórico conturbado (alargamento da influência soviética, iminente queda de Saigão) e enquanto tem de lidar, também, com as suas angústias e com a infidelidade da mulher de quem, finalmente, se separa.

Smiley recruta Jerry Westerby, o “colegial” do título, aristocrata obscuro, romancista falhado, várias vezes casado, um ex-agente que se aborrece no seu retiro em Itália e se dispõe a engrossar as hostes de jornalistas de diversas nacionalidades (praticamente aprisionados na então colónia inglesa na China), com a missão de seguir o rasto de largas somas de dinheiro que afluem, provenientes de Moscovo, para uma conta numerada, pertença de uma figura poderosa, um tal Drake Ko, presidente da China Airsea e conhecido filantropo. A partir dos sufocantes quartos e clubes da colónia, é possível contemplar o território inimigo, essa China que se agiganta sob a liderança de Mao Tsé-Tung. Para Westerby, é o início de um longo e acidentado percurso através do Laos, do Camboja e da Tailândia, com a missão de sabotar os financiamentos de Moscovo no Extremo Oriente, à medida que investiga os segredos de Ko e se embrenha cada vez mais numa rede perigosa e funesta.

Em O Ilustre Colegial — cuja epígrafe é um verso de Auden que refere os rapazes que desde o Colégio sabem que “o Mal com Mal se paga” —, embora seja visível a influência de Graham Greene, a verdade é que le Carré cria, em Westerby, um protagonista parecido com o James Bond de Ian Fleming, mais um de uma longa lista de atraentes e cavalheirescos britânicos que, com a mesma facilidade e desenvoltura, atravessam fronteiras a salto, roubam segredos, escondem cadáveres, manipulam governos e exércitos, emborcam gins e martinis, agregam-se em saudável e estrepitoso convívio com os seus pares e inimigos e suam as estopinhas, enquanto fêmeas embasbacadas os seguem quase sem pestanejar. De notar o contraste com Smiley, assoberbado por questões morais, enredado em paradoxos, perseguido pela traição de amantes, amigos e camaradas e permanentemente agastado com a incompetência das instituições, com a venalidade dos políticos, com a ganância dos “primos” americanos e com a omnipresente chuva londrina.

O Ilustre Colegial

 faz justiça à ideia de que a espionagem é um dos terrenos mais férteis para a ficção; com o seu jogo de sombras e uma perpétua rotatividade de máscaras, vai ao encontro da irónica frase do autor: “Ao que parece, só a traição é intemporal.” 

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