A artista dos sete ofícios

Maria Keil atravessou quase todo o século XX com um impulso criativo que nunca se limitou a uma única disciplina — retrospectiva em Sines.

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Maria Keil pintando um painel no Cinema Monumental, em Lisboa: como muitos artistas portugueses activos na primeira metade do século XX, teve de se dedicar a outros ofícios para subsistir

Tinha uma repartida certeira e irónica, um pouco ao jeito de Agustina mas sem o juízo de carácter impiedoso da escritora. Se fosse viva, teria feito 100 anos há poucos dias. É sobretudo conhecida pelos painéis de azulejos com que revestiu as estações do Metropolitano de Lisboa na década de 50, sem dúvida os primeiros exemplares de arte pública que traziam a então novíssima abstracção geométrica portuguesa para o dia-a-dia dos lisboetas. Era Maria Keil (1914-2012), e a sua obra vai muito além desses notáveis padrões.

Em Sines, decorre até final de Outubro a grande retrospectiva da sua obra, De propósito, Maria Keil. A exposição, organizada pelo Museu da Presidência da República e com itinerância já feita por várias cidades do país, abrange as diversas áreas pelas quais a obra da artista se desdobrou. É decerto o resultado de um trabalho de investigação exaustivo, que inclui desde os objectos pessoais de Maria Keil até à sua actividade como pintora, ilustradora, publicitária, figurinista, criadora de móveis e objectos de design, desenhadora, escritora de livros infantis, criadora de tapeçarias e outras ainda, difíceis de catalogar e classificar. Maria Keil, como era habitual para os artistas portugueses activos na primeira metade do século XX, lançou mão dos sete ofícios para viver. Na época, o mercado da arte era insuficiente para que um artista subsistisse apenas graças à pintura ou à escultura. Todos tiveram de trabalhar noutras áreas. 

O Centro de Artes de Sines, que possui áreas mais amplas, recebe a maior fatia da exposição. Explicam-nos, logo à entrada, a estranheza do título De Propósito: quando fez 80 anos, Maria Keil teria dito que sim, tinha 80 anos e era de propósito. Há de resto dois auto-retratos seus pendurados num dos corredores que dão acesso à primeira sala onde assina, em jeito de legenda, “foi de propósito” num, e “não foi de propósito” noutro: um sinal desse humor por vezes desconcertante com que recebia quem se interessava pelo seu trabalho. Depois, numa montagem densa, por vezes com alguns momentos menos felizes (as tabelas a vermelho, por exemplo, que contrastam berrantemente com o suporte papel quase omnipresente neste espaço), descobrimos a sucessão de figuras e cenas desenhadas, em peças autónomas ou em ilustrações de livros, que demonstram a mestria de um traço seguro, moderno, bem em consonância com a arte da época. Um dos textos que acompanham a exposição fala-nos de uma coincidência com o neo-realismo, mas tal não passa disso mesmo, de uma coincidência. Percebemos rapidamente que a obra de Maria Keil é avessa a grupos, a ditames, a regras impostas, e que se desenrola naturalmente ao sabor das encomendas que surgem e da sua própria dinâmica. E este facto é particularmente nítido nos retratos em que se revela uma artista excepcional, e dos quais a exposição apresenta alguns exemplares.

Maria Keil, que frequentou a Escola de Belas-Artes de Lisboa na década de 30, foi casada com o arquitecto Francisco Keil do Amaral. A convivência com arquitectos amigos do marido proporcionou-lhe encomendas para decorações de edifícios, e foi aqui que a escolha do azulejo como material de revestimento se impôs. Numa entrevista antiga, a artista contou-nos que, como não havia dinheiro para a decoração do Metropolitano (Francisco Keil tinha a seu cargo o projecto do edifício da sede), tinha pensado em criar um dado número de padrões geométricos de azulejos que, em combinatórias diferentes, iriam possibilitar a concretização de obras distintas para todas as estações. Este trabalho, que em conjunto com o mural feito para um dos edifícios da Avenida Infante Santo, também em Lisboa se tornou emblemático da azulejaria portuguesa modernista, antecipou outros de igual relevância feitos para decoração de interiores; salientemos desde já as tapeçarias desenhadas para hotéis e escritórios, de que a exposição apresenta diversos cartões; ou o mobiliário feito para a Pousada de S. Lourenço, na Serra da Estrela (de 1948, projecto de Rogério de Azevedo), que pela primeira vez introduz uma adaptação de motivos oriundos da arte popular ao design erudito, facto que hoje, como se sabe, está na ordem do dia para vários criadores contemporâneos. Ao contrário do que hoje sucede, havia na época um teórico, António Ferro, à frente dos destinos do Serviço de Propaganda Nacional (SPN) / Serviço Nacional de Informação (SNI), que com um saber e uma erudição inegáveis sustentava conceptualmente o “portuguesismo” que se pretendia implantar, na adaptação local do que se passava, de resto, em toda a Europa — sem que fosse possível perceber então que esse intuito anunciava o fim da própria arte popular que se pretendia ressuscitar. A exposição no Centro de Artes de Sines completa-se com trabalhos publicitários e figurinos para a companhia de bailado Verde Gaio, outra criação do SPN/SNI. 

Uma visita ao Centro Cultural Emmerico Nunes mostra-nos obras mais íntimas: desenhos escolares, cartas para as netas, cartões de boas-festas que Maria Keil desenhava todos os anos. Fica, deste vastíssimo acervo, a certeza da verdade de uma afirmação da artista: do que ela gostava mesmo era de desenhar.

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