O visionário que fez o 25 de Abril do jornalismo na rádio e na TV

Emídio Rangel, criador da TSF e ex-director-geral da SIC e RTP, morreu na quarta-feira aos 66 anos.

Fotogaleria
Emídio Rangel, em 2002 Daniel Rocha
Fotogaleria
Em 2003 Miguel Silva
Fotogaleria
Em Fevereiro deste ano Joana Bourgard
Fotogaleria
Em 2002 Daniel Rocha

Vanguardista, visionário, nome maior da informação de rádio e televisão no pós-25 de Abril, homem muito sanguíneo, determinado, galvanizador, revolucionário mas também controverso, ambicioso. Ontem, vieram os elogios próprios de quem chegou ao fim da vida. Emídio Rangel, criador da TSF, antigo director-geral da SIC e da RTP, homem da comunicação, morreu aos 66 anos de cancro.

Começou a sua vida profissional pela rádio, ainda em Angola, e em Lisboa o mundo radiofónico teve que dividir o coração de Rangel com a televisão. Poucos profissionais em Portugal têm no currículo o peso de terem “construído dois órgãos de comunicação social que marcaram a história da comunicação social portuguesa” e de aplicar uma nova concepção de jornalismo que acabou por fazer escola, realça o jornalista Adelino Gomes. Rangel “fez o 25 de Abril da profissão jornalística na rádio, com a TSF, e na TV, com a SIC”.

Emídio Rangel nasceu em Setembro de 1946 no Lubango; em Sá da Bandeira, frequentou o Liceu Diogo Cão – onde andaram também Savimbi e Pepetela – e começou aos 15 anos como técnico de consolete na Rádio Clube de Huíla. Haveria de mudar-se para a Rádio Comercial de Angola e chegar a director com apenas 20 anos. Ali lançou o programa Nocturno, com a notícia e a reportagem como matéria-prima. Próximo das posições do MLPA, acabou por deixar angola com o acossar da guerra civil.

Vem para Portugal em 1975 e tenta ganhar dinheiro a fazer venda ambulante de livros – que não corre muito bem. Inscreveu-se num concurso público para a RDP. Ficou em segundo lugar entre 300, só ultrapassado por Fernando Alves, e entraram 20. A sua praia era a reportagem, chegou a ganhar alguns prémios e foi chefe de redacção. Mas o espírito inconformado, a par das perturbações políticas próprias da época, foram desgastando a sua posição na rádio. Em 1986 chegou a trabalhar na candidatura de Maria de Lurdes Pintassilgo a Belém – antes apenas declarara apoio a Eanes.

Acabou por deixar a emissora pública para, com um grupo de jornalistas, constituir uma cooperativa para lançar a TSF, no tempo do boom das rádios piratas e em que o Governo prometia a legalização do espectro radiofónico através da atribuição de licenças.

Da cave do número 32 da Rua Ilha do Pico, em Lisboa - remodelada pela própria equipa para acolher a TSF-Rádio Jornal, teve como sócios fundadores a Cooperativa TSF, um grupo de O Jornal e a FNAC - Fábrica Nacional de Ar Condicionado – saiu a primeira emissão pirata a 29 de Fevereiro de 1988 e também as ondas de um jornalismo novo. A licença só viria em 1989.

Mais do que fundar, Rangel “criou” a TSF, defendia ontem David Borges, antigo director da estação. Porque foi ele quem a “desenhou na sua cabeça e depois concretizou. Ao criar a TSF desenhou um novo paradigma da comunicação portuguesa.” O jornalista diz que Rangel funcionava com base “em duas coordenadas”: como abordar um assunto que ainda não tenha sido falado ou como fazê-lo de forma diferente.

“Há um antes e um depois de Emídio Rangel na rádio portuguesa”, diz José Fragoso (ex-TSF, RTP, SIC e TVI). “Ele foi um visionário, o acelerador de partículas contra o cinzentismo da comunicação e o monopólio das rádios.” E lembra a iniciativa de enviar jornalistas para cenários de conflito e para grandes acontecimentos internacionais numa “vontade férrea de estar onde a coisa acontecia” que a TSF sintetizava na sua assinatura sonora “Vamos ao fim da rua, vamos ao fim do mundo”.

Houve depois conflitos – que se arrastaram anos nos tribunais - entre os cooperantes, que envolveram um episódio em que Rangel usa um berbequim para conseguir arrombar a porta e entrar nas instalações. Era um “homem muito sanguíneo”, lembrou o director da RTP Luís Marinho.

Em 1992 Francisco Pinto Balsemão convida-o para director de Informação da SIC, lançada em Outubro, que acumula com a direcção de programas e depois assumiu o cargo de director-geral. Levou o canal à liderança das audiências num caminho fulgurante, chegando mesmo a 50% de share enquanto a RTP definhava e a TVI não descolava. Um poder esmagador sobre a opinião pública que lhe permitia “vender” Presidentes como sabonetes, chegou a gabar-se.

A inovação que imprimira à informação na rádio, replicou-a na SIC: “O jornalista no posto de comando, independente, inconformista e com uma linguagem de qualidade, para um jornalismo de excelência”, descreve Adelino Gomes. Também na programação, surgia, a par das novelas brasileiras da Globo, o país real no ecrã, com programas como Ponto de Encontro, Perdoa-me, Cenas de um Casamento, All You Need is Love, Casos de Polícia, O Juiz Decide, ou de glamour, como Chuva de Estrelas. Lançou os canais SIC Internacional, Gold e Notícias. Entrou em conflito com Nuno Santos, considerado seu delfim, que só foi sanado em 2011 - e que lhe elogia a “energia, visão e arrojo” com que dirigiu a SIC – e também com Pedro Norton, agora CEO da Impresa, entretanto resolvido. “A TV portuguesa mudou muito, e mudou para melhor graças à sua ousadia, ao seu inconformismo e ao seu espirito combativo”, diz este último.

Mas acabou por sair magoado com Balsemão e uma indemnização de um milhão de euros numa altura em que a estação começou num caminho descendente de perda de audiências para a TVI, quando esta emitia sucessivas edições do reality show Big Brother – que recusara - e novelas de produção nacional. É dessa altura o conflito com Nuno Santos, seu delfim

Em 2001, chega à RTP a convite do Governo PS para exercer funções como director-geral. Acabou por sair no ano seguinte, já com o PSD, regressando à rádio, como consultor da TSF, para desenhar o relançamento da estação noticiosa.

Desde então integrou diversos projectos, boa parte deles para Angola, e em Portugal esteve na preparação de uma das propostas para o quinto canal em sinal aberto que deveria ter sido lançado com a TDT – Televisão Digital Terrestre. Durante 12 anos falou-se ciclicamente no seu regresso, o que acabou por não acontecer.

Homem da rádio (da palavra ouvida) e da televisão (da palavra vista) por excelência, foi na nessa nova forma de comunicação que são as redes sociais que se foram avolumando pesares. Ao mesmo tempo, a TSF dedicou-lhe uma emissão especial, entrecortando depoimentos com reposição de reportagens sobre a história da própria rádio e entrevistas.

Depois de ter combatido um cancro na bexiga pela primeira vez em 2004, a doença voltou a bater à porta há vários meses. Nas últimas semanas estivera internado no Hospital de Santa Maria e fora transferido para o Egas Moniz há quinze dias, quando o seu estado de saúde piorou. Ironicamente, na mesma altura, o cantor Fernando Tordo colocava um comentário na rede social Facebook dizendo que Rangel tinha morrido e enaltecendo o seu papel na comunicação em Portugal. O velório será hoje a partir das 17h na Basílica da Estrela e a cremação amanhã, no cemitério dos Olivais, depois de uma missa na basílica às 12h.

Em 1991, quando a sua vida era apenas a rádio, Emídio Rangel dizia que o programa de televisão de que mais gostara fora A Caixa que Mudou o Mundo. Em Portugal, foi um dos que a ajudaram a mudar.

Sugerir correcção
Comentar