Em viagem pela China com um etnógrafo de "salvados"

O documentarista e antropólogo J. P. Sniadecki mostra-nos a China dentro de um comboio: The Iron Ministry na competição de Locarno

Foto
"The Iron Ministry" DR

Os primeiros cinco minutos de The Iron Ministry são ruídos industriais com o ecrã a negro, como uma fábrica em plena laboração, seguidos por um super-grande-plano do que parece uma conduta, ou um tubo, ou...

Por um instante pensamos que estamos, outra vez, no território dos documentários tonais e experimentais do Laboratório de Etnografia Sensorial de Harvard que tanta sensação fizeram nos últimos anos - com Leviathan de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, vencedor do IndieLisboa em 2013, à cabeça. 

J. P. Sniadecki faz parte dessa trupe; co-assinou com Paravel Foreign Parts (já apresentado e premiado em Locarno em 2010), e sob a égide do Laboratório dirigiu em 2012 People's Park, plano-sequência único de 80 minutos rodado num dia de Verão num parque chinês (esteve no DocLisboa).

The Iron Ministry, contudo, é outra coisa; feito fora do Laboratório, é mais "convencionalmente" estruturado do que aqueles filmes dos seus "amigos e afilhados", como diz o realizador ao PÚBLICO. E o modo como o filme começa, da escuridão em direcção à luz, como um zoom que lentamente recua do pormenor para dar a totalidade da imagem, é o espelho do seu tema. 

"O ministério do ferro" é uma alcunha coloquial para o Ministério dos Transportes Ferroviários chineses, e o que parece ser uma fábrica em plena laboração revela-se ser um comboio em viagem. The Iron Ministry é uma espécie de retrato à la minuta do progresso da China visto pelo microcosmos de uma carruagem - ou de várias carruagens, que pertencem a comboios e linhas diferentes mas que Sniadecki monta como se atravessasse um mesmo trem com divisões de classe. 

Numa curta conversa em Locarno, onde veio apresentar o filme, Sniadecki explica que essa ideia de um único comboio é um efeito de montagem - as imagens vêm de 50 viagens de comboio pela China realizadas ao longo de três anos , exigidas pela investigação para o seu doutoramento em antropologia dos media, e compactadas em 80 minutos de percurso. 
(Não é o único efeito de montagem do filme; o design de som, a cargo de Ernst Karel - que já fora responsável por Leviathan - é de um requinte e de uma sofisticação extraordinária no modo como cria uma paisagem aural que traduz na perfeição o microcosmos visual do filme.)

Das carruagens sobrecarregadas de imigrantes que regressam a casa para as festas tradicionais e que dormem onde podem, como podem (até mesmo em casas de banho) ao conforto "ocidental" de TGV com ar condicionado e wifi, é uma só China que Sniadecki nos mostra, entalada entre as tradições do passado e a esperança no futuro. Há uma cena em The Iron Ministry que é significativa dessas contradições: quatro jovens cosmopolitas discutem o futuro da China, as questões ambientais, o cinismo da política, e parece que estamos a ouvir jovens ingleses, ou portugueses, ou italianos a falar dos seus países e a questionar o governo.

 

Enquanto isso, um empregado da limpeza varre o imenso lixo que se acumula no chão da carruagem, numa espécie de "bola de neve de lixo" que nos faz pensar no célebre "continente flutuante" de detritos que vagueia pelo oceano e que sublinha o desfasamento entre palavra e acção, desejo e realidade. Que não é exclusivo da China moderna, longe disso, mas que ganha uma dimensão diferente face ao crescimento acelerado daquela potência asiática.

Sniadecki não se importa que o lado "exótico" da China possa ser "porta de entrada" para o seu filme. "Mas a verdade é que os chineses não são em nada diferentes de nós, têm as mesmas preocupações quotidianas e as mesmas dificuldades económicas que nós temos no Ocidente. Alguns espectadores perguntam-me como é que consegui que as pessoas se mostrassem tão abertas perante as câmaras, discutindo política, emigração, etc., mas são estas conversas que eles têm todos os dias, sem problemas de espécie alguma."

The Iron Ministry acaba, assim, por ser uma espécie de "registo audiovisual" de uma China em transição, o que vai ao cerne da sua motivação - e da dos suas colegas do Laboratório - para fazer filmes propositadamente colocados na "confluência" da etnografia, do experimentalismo, do documentário, da academia. "Os nossos filmes são tudo isso junto porque, ao longo de séculos, procurou criar-se uma separação entre ciência e arte , mas no seu melhor a ciência e a arte fazem exactamente o mesmo, que é experimentar e procurar criar coisas novas. E é isso que fazemos: rascunhos, experiências,  porque achamos que ciência e arte não têm de estar de costas voltadas e queremos fazer filmes que nunca tenhamos visto antes. Além do mais, reivindico essa noção de 'etnografia de salvados', de registo visual da história de um país: alguns dos comboios que filmei já foram retirados de serviço e já não estão em funcionamento..."  

 

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