A mulher que podia ser "um dos rapazes"

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Howard Hawks terá um dia dito, sobre o romance entre Lauren Bacall e Humphrey Bogart: “Bogie apaixonou-se pela personagem que Bacall interpretou [em Ter e Não Ter], e portanto ela teve que o interpretar para o resto da vida”.

Há que descontar um certo despeito, pois Hawks também andou a “rondar” Bacall durante a rodagem desse filme que a revelou, e não lhe caiu muito bem os dois homens chegaram a zangar-se que tenha sido “Bogie” a levar a melhor e a casar-se, em menos de um fósforo (expressão apropriadíssima numa paixão nascida entre os muitos cigarros de Ter e Não Ter), com aquela miúda de 19 anos que Hawks descobrira na capa de uma Harper’s Bazaar que lhe fora trazida à atenção pela sua mulher, “Slim” (exactamente o nome da personagem de Bacall no filme: esta história é muito mais intrincada do que parece).

Mas fora a ligeira dor de cotovelo, para não lhe chamar outra coisa, de Hawks, o que ele diz tem uma grande parte de verdade: a imagem, a “personagem” de Bacall, ficou imediatamente definida à primeira, nesse ano de 1944 em que se estreou Ter e Não Ter, entre os seus olhares, os seus gestos e a sua voz, e sobretudo na maneira como olhares, gestos e voz respondiam à pose de sedutor blasé e cansado que era a de Humphrey Bogart. Nos filmes – que foram muitos, variados e nem todos bons –, Bacall não foi sempre “esta” Bacall; e no entanto, fora dos filmes, até esta quarta-feira, quando morreu aos 89 anos, ainda era, foi sempre, “esta” a Bacall que víamos, como se tivesse sido fora dos ecrãs, e nela própria, que “Slim” tivesse continuado a existir.

A química entre Bacall e Bogart, entre Bacall e a câmara, entre Hawks, Bogart, Bacall e a câmara, foi de tal ordem que a seguir a Ter e Não Ter imediatamente repetiram a graça, nesse The Big Sleep (À Beira do Abismo) de 1946 de que ninguém consegue recontar a história (é porventura o mais “incompreensível” filme da Hollywood clássica) mas toda a gente recorda o inacreditável erotismo em “duplo sentido” de tantos e tantos diálogos entre Bogart e Bacall – como aquele, celebérrimo, em que a metáfora é hípica e quando ele lhe pergunta “qual a distância” que ela consegue correr Bacall responde que “depende muito de quem estiver na sela”.

A maior insolência de Bacall era esta, o facto de estar perfeitamente à altura da insolência de Bogart, a mais insolente das estrelas de Hollywood. Não era só o seu par ideal, era o seu espelho, era o seu reflexo. Não era o “romantismo”, muito mais típico, do outro e quase contemporâneo affair cinematográfico de Bogart (Ingrid Bergman e Casablanca). Era outra coisa, era como se Bogart fosse um super-herói coxo de um sidekick e finalmente o tivesse encontrado. E nisso residia o segredo, a diferença, da presença e da “persona” de Bacall: ela estava à altura dos rapazes, ou dos homens, se preferirem. Não sofria numa posição submissa e subalterna, e não estava acima deles como por exemplo Marlene Dietrich, distante, fria, manipuladora, estava.

Hawks, conhecido num daqueles maravilhosos clichés cinéfilos por ter inventado “a câmara à altura do homem”, encontrava em Bacall a mulher “à altura do homem”, nem um centímetro acima nem um centímetro abaixo. Bacall deu corpo a esse sonho, que era o de Hawks, o de Bogart, de todo aquele grupo (ainda Hemingway e William Faulkner) que na época confraternizava em pescarias e bebedeiras: era a mulher que se podia imaginar a alinhar nisso sem ai nem ui, a dizer mata se os outros dissessem esfola, a ser “um dos rapazes”.

Estão todos juntos outra vez, grande farra deve haver para os lados do Paraíso, ou do Inferno. Crítico de cinema

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