Medicina retalhada

Os médicos já não são o esteio dos “serviços de saúde”. Os serviços estão mais diversificados e o leque de profissionais de saúde faz com que o peso relativo dos médicos esteja em declínio. Porém, o peso específico ainda tem relevância, pois continuam a ser efectivos protectores de cada pessoa doente.

Os fundamentos da ordem médica assentaram, durante séculos, na Medicina hipocrática com primazia para o acto clínico.

“O Médico e a sua arte”; “o Doente e a sua natureza individual”; “a Doença” são conceitos hipocráticos que se mantêm actuais. Apesar da inovação e evolução tecnológicas.

O raciocínio clínico é um processo que tem por base diversos factores, entre eles, experiência, aprendizagem, dedução, indução, intuição, interpretação de evidência científica, características psicológicas individuais, etc..

O processo inicia-se com a recolha de informação, observação, interpretação e diagnóstico presuntivo e em contacto directo com o paciente.

A Medicina actual não é só clínica. Um licenciado em Medicina pode ser tanta coisa!… Até pode ter deixado de ser “médico” ou nunca ter chegado a sê-lo.

Ser médico implica uma atitude ética dirigida aos doentes e um compromisso com o ser humano em sofrimento. Um exercício ”clínico”, embora com características diversas, mas sempre vocacionado para a partilha com o sofredor. Não basta ser bom técnico!

A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação (Juramento de Hipócrates, Genebra, 1983).

Aqueles que sentem nostalgia da Medicina clínica (hipocrática!) devem lutar pela sua preservação, reconhecendo que o exercício da Medicina se realiza, na sociedade ocidental actual, disperso por um vasto leque de actividades de características e core business tão distintos. Até distantes da prática clínica, cada vez mais pressionados por objectivos de índole não-hipocrática.

Perdeu-se a abrangência e a universalidade da Medicina Interna e da Cirurgia Geral. A subespecialização, sendo necessária para o aprofundamento do conhecimento e a perícia técnica e a inovação tecnológica, é limitativa da visão holística do ser humano, em particular o doente. Mas condiciona a percepção, análise e intervenção na vasta manta que são o indivíduo, a sociedade e as suas interacções. Transforma-os numa manta de retalhos. Perde-se a ”visão macro”!

A pulverização da Medicina, em função da diferenciação técnica e tecnológica, tende a estabelecer uma nova ordem com a reflexão e as decisões não centradas na pessoa, mas em algumas das suas parcelas em sofrimento. Os decisores não analisam as problemáticas envolvidas na procura da melhor solução para a pessoa, mas actuam focados naquela parte específica, negligenciando, muitas vezes, outros focos de “dor” e as interacções.

Neste amanhecer do século XXI o sofrimento humano pode ser actual e real, pode ser uma hipótese para o futuro (do corpo ou da finança) e, até, resultante de criatividade manipuladora. O que se aprecia e fomenta é a produtividade e o rendimento, descurando a ética e o valor individual da pessoa.

A humanização vem sendo preterida pela industrialização do homem, retalhado e pecuniarizado.

Na Ordem dos Médicos registam-se 47 especialidades, 17 subespecialidades e 12 competências. E existem muitas outras subdivisões de áreas de acção médica, como: Medicina Pública, Privada, Convencionada, Social, Preventiva, para a Saúde, para a Doença, Cuidados continuados, do Viajante, em Seguros, para a Política, para a Gestão, Turismo de Saúde, etc. e, também, a medicina adjuvante do chamado Negócio da Saúde.

Esta panóplia de actividades, ditas médicas (umas sim, outras nem tanto), gera equívocos, incompetências e usurpações legalizadas e cria um universo de denominados médicos que, na verdade, são licenciados em Medicina que ocupam, ou são obrigados a ocupar, funções para as quais poderão estar menos preparados ou mesmo inaptos, podendo facilitar objectivos menos confessos, em áreas de Saúde.

A Medicina, profissão liberal, é residual. Nem por isso os médicos deixam de ser explorados e privilegiados na atribuição do ónus no “erro em saúde”. E a população, em geral, é instigada a manter a perspectiva de que existe uma dominância da responsabilidade do erro por parte do médico apesar de sabermos que a maioria dos “erros em saúde” é consequência de múltiplas falhas, frequentemente em cadeia, no sistema (de saúde).

O médico clínico é, cada vez mais, um átomo na máquina de produção e não uma centralina.

E quanto aos serviços/sistema de saúde?!

Há mais e mais profissões e actividades chamadas “serviços de saúde”, com estatutos autónomos, com mais ou menos, melhor ou pior formação e experiência, relativamente ao ser humano doente. A sociedade e as “entidades” insistem em querer responsabilizar e culpabilizar “os médicos” relativamente aos erros do sistema de saúde. Dá jeito!

A coberto de propalado e reiterado interesse para a “saúde”, desenvolve-se e estimula-se a industrialização e comercialização do produto “saúde”, onerando custos com saúde.

Contudo, o usufruto directo e aplicado à doença, preservação da saúde ou prevenção de doenças, dos cidadãos e os honorários não representam a maior fatia dos custos da “saúde”.

Os médicos já não são o esteio dos “serviços de saúde”. Os serviços estão mais diversificados e o leque de profissionais de saúde faz com que o peso relativo dos médicos esteja em declínio. Porém, o peso específico ainda tem relevância, pois continuam a ser efectivos protectores de cada pessoa doente. A pulverização das actividades em Medicina e a progressiva destruição do exercício da Medicina hipocrática, a par da explosão da Medicina tecnológica e burocrática, também reduzem o peso específico.

A importância real e prática da inovação tecnológica, na praxis médica, ela própria responsável pela atomização médica, não pode retirar a relevância e a primazia do acto médico clínico assente na adequada relação médico-doente. O investimento em recursos tecnológicos e logísticos não pode preterir a formação e actualização dos profissionais/ técnicos de saúde.

A tecnologia de diagnóstico necessita de quem a alimente e interprete os resultados. A interpretação é feita por pessoas e, sendo para pessoas, exige formação médica. Os profissionais, menos educados e experientes no raciocínio clínico, consomem enormidades de EAD (Exames Auxiliares de Diagnóstico), eles próprios condicionantes do raciocínio médico e suporte de desresponsabilização.

Os enormes custos com tecnologia determinam incentivação ao consumo de tecnologia, sem critérios clínicos e, tantas vezes, sem qualquer interesse para o doente. Verdadeiro desperdício! Mas, aumentam, muitíssimo, os custos globais com a saúde.

Os EAD são ferramentas que ajudam o médico no diagnóstico, tal como os programas informáticos e as aplicações são ferramentas de trabalho que facilitam a vida dos gestores, economistas, engenheiros, arquitectos, etc., etc., mas não os substituem.

Para o exercício de qualquer das actividades não-clínicas é indispensável aos licenciados em Medicina fundamentos e experiência hipocrática. Se as quiserem exercer com probidade e com custos controlados!

Médico e coordenador médico da Best Medical Opinion – Pareceres Médicos & Perícias Médicas

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