A arte de disfarçar imperfeições cranianas nas barbearias tradicionais do Porto

As velhas barbearias portuenses estão muito longe do movimento de outros tempos, mas a memória e os laços estabelecidos durante décadas mantêm-nas de pé.

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Na Norton, tal como em outras barbearias da baixa portuense, há muitos clientes que vêm pela amizade com o barbeiro Manuel Roberto

“A função do cabeleireiro é esconder as imperfeições da cabeça”. A frase que ouviu da boca de um dos professores da escola profissional servir-lhe-ia de mote para a vida.

A profissão, que se tornou arte — observa o artista —, escolheu-a há mais de 50 anos. A Barbearia Sport, mesmo à sombra dos Clérigos, é  local onde, todos os dias, Franquelim Pais se senta à espera que os cadeirões, formados por uma  estrutura de ferro mas confortados pelo couro, fiquem ocupados.

A porta abre-se poucas vezes. Já não são muitos os que aqui vêm. As barbearias portuenses deixaram de ser casas cheias. Ao contrário de antigamente, os clientes escasseiam. Pelas cadeiras da Sport passaram advogados, professores catedráticos, empregados da baixa portuense, gente de muitas profissões.

“As melhores barbearias eram todas aqui na baixa. Esta é pequena mas é boa!”, elogia Franquelim que, noutros tempos, se habitou a ver as ruas carregadas de gente.  Entretanto a baixa esvaziou-se, o comércio diminuiu, os cabeleireiros passaram a ser unissexo. 

No estabelecimento e na arte, herdados do pai, a maquinaria é mínima. A navalha denuncia o corte minucioso. A lâmina “é quem molda o couro cabeludo”. Franquelim, sempre de bata, lembra-se do maior desafio que se lhe colocou: o bigode à Clark Gable, estrela do filme “E tudo o vento levou”. Na altura, quando até “um pêlo contava”, não havia cabelos nem barbas iguais. “Antes até se notava em que casas eram feitos os cortes. Hoje não, os cabelos são todos iguais”, lamenta o artista.

Gerações de fiéis
O corte “à barbeiro antigo”, estilo clássico, é o pedido mais ouvido noutro estabelecimento, o Salão Veneza, a meio caminho entre o café Guarani e o túnel de Ceuta. Mas Pedro Almeida e Manuel Monteiro satisfazem todas as pretensões: “Também fazemos os outros cortes, até custa menos! Às vezes até dizemos que estragamos um cabelo”.

Numa primeira fase, o salão, com 62 anos, morou na Rua do Almada. Pelas mãos do fundador, José Rodrigues, passaram figuras tão ilustres como João Villaret ou Vasco Santana. Hoje são outras as caras conhecidas. Vinte e oito anos de casa permitiram a Pedro Almeida percorrer gerações: “há um rapaz a quem já cortei o cabelo ao pai, avô, bisavô e agora ele”.

Manuel Monteiro juntou-se ao Veneza há pouco tempo mas também é barbeiro desde que se lembra. Mudaram-se as paredes, mas a casa manteve-se. “Vim de outra barbearia e muitos dos clientes vieram comigo. Os homens são mais fiéis. Ganham confiança com as pessoas e não deixam”. 

Na Barbearia Norton, Augusto Carvalho corta barbas e cabelo há mais de quarenta anos e confirma que a maior parte dos clientes “vem pela amizade”. Nesta casa da rua Entreparedes, perto do Teatro Nacional de São João, a confiança ganha-se nas conversas ritmadas pelos cortes das lâminas e das tesouras.  

Franquelim Pais usa o futebol para as puxar, mas Pedro Almeida não o quer nas conversas, a par da política e da religião. “A gente tem de estar sempre do lado do cliente porque se o chatearmos muito, ele não vem. Se ele disser que é portista, eu digo que até tenho uma simpatia pelo Porto, se for do Benfica ou do Sporting o mesmo. Com os partidos é igual”.

Quem vem, chega para corrigir as imperfeições da cabeça dizia o velho professor. E isso parece que basta para facilitar uma relação de companheirismo e amizade. “Há dias em que não nos apetece falar e são eles a puxar por nós. Perguntam pelas coisas que sabem que nós temos. Pelas couves, pelas galinhas…” Por entre tantas cabeças, é preciso “saber ler o cliente”, nota Pedro Almeida. Uns optam por leituras silenciosas, outros por diálogos ritmados pelas lâminas e tesouras.

Nos últimos tempos, as conversas são mais simplistas e directas. Fala-se mais por gestos. Os turistas abrem as portas. Grande parte para fotografar, mas a curiosidade já levou muitos a sentarem-se no cadeirão. Pedro já fez a barba a muitos estrangeiros, maior parte deles homens “entre os 20 e os 30 anos”, que nunca tinham “feito a barba num barbeiro”. Só lhe pedem “que não mude a casa” porque “está bem assim”. 

Franquelim Pais gostava de abrir um barbeiro nos arredores da cidade porque lá “as pessoas têm mais tempo”. Teme que a arte se torne um mero artifício. “Como queremos que uma profissão progrida se não há quem corte cabelos?” 
Augusto Carvalho sentencia: “O barbeiro, em si, tem tendência a acabar”. As barbearias portuenses permanecem como baluartes de tradição, sem renovação à vista. “Os barbeiros funcionam no rés-do-chão. Os alugueres são muito mais caros do que noutros andares”. 

Os intervalos entre clientes são cada vez maiores. Augusto lembra–se das quatro cadeiras do Norton cheias e das “muito menos horas livres quando estavam quatro pessoas a trabalhar”. O rádio, as revistas e o jornal entretêm até que a porta se volte a abrir. Na profissão, há uma certeza: “Tem que se esperar pelos clientes”.

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