O presidente da aldeia que deixou de existir

Fleury-devant-Douaumont, uma aldeia às portas de Verdun, foi destruída na mais longa batalha da I Guerra Mundial, onde morreram mais de 700 mil soldados, franceses e alemães. Foi preservada como floresta, sem ser reconstruída, como um espaço de memória de combates sangrentos.

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Jean-Pierre Laparra preside a um município sem habitantes – Fleury-devant-Douaumont, uma “aldeia morta” em 1916, durante a longa batalha de Verdun, a mais sangrenta e traumática da I Guerra Mundial para os franceses. Ali viviam 420 pessoas há 100 anos, mas hoje não há vivalma: é apenas um bosque ajardinado, sem habitantes. Mas quando Laparra fala, a antiga povoação da Lorena ganha vida.

“Aqui havia uma padaria, ali uma quinta, sabemos que caiu um obus na cozinha, havia uma barrica, ainda lhe encontrámos os restos, embora fosse apenas ferro-velho…”, conta Jean-Pierre Laparra, um homem rechonchudo, com ar de bon vivant e riso fácil, enquanto vai andando pelos trilhos abertos no bosque. Há alguns marcos que identificam o que antes existia ali, em francês, alemão e inglês: exploração agrícola, padaria, escola. Mas o que domina é o verde, as árvores têm um musgo tão peludo que parece um tapete de franjas.

“Esta era uma aldeia de uma rua só, uma aldeia típica da Lorena: uma rua principal, ao longo da qual se distribuem umas 50 casas, e umas ruazinhas transversais mais pequenas, que saem todas da artéria principal”, relata o maire.

“Trabalhei aqui a pôr os marcos, cada um representa uma casa. Por isso sei onde ficavam as coisas. É verdade que consigo ver como se fosse na altura da guerra. Há algumas fotos da época, uma de duas vacas frente a uma quinta, não há carros, há galinhas, não há barulho, só o dos animais e das pessoas, era uma vida simples. Era calmo. E ainda é muito calmo, parece possível reconstituir tudo como era quando está assim tudo quieto”, diz. Com os visitantes reduzidos ao mínimo, no fim de uma tarde de Junho, momentos antes de uma trovoada de Verão, só se ouviam passarinhos.

Fleury-devant-Douaumont fica a poucos quilómetros de Verdun, no Nordeste da França, próximo da fronteira com a Bélgica, e ao pé do forte de Douaumont – que caiu nas mãos dos alemães logo nos primeiros dias da ofensiva lançada a 21 de Fevereiro de 1916. A aldeia foi usada como posto militar e trocou 16 vezes de mãos nesta guerra que se caracterizou pelo imobilismo das trincheiras, mas que teve em Verdun uma batalha cuja intensidade e duração desafiou a própria definição de “batalha”: durou cerca de 300 dias, até 19 de Dezembro de 1916. Só no primeiro dia, estima-se que tenham sido lançados em Verdun um milhão de obuses.

Concebida pelo chefe de Estado-Maior alemão da altura, Erich von Falkenhayn, como um projecto de “guerra de atrito” – a ideia não era propriamente conquistar Verdun, ou os vários fortes que a rodeavam. A cidade por si não tinha qualquer interesse estratégico para os alemães. A intenção era desgastar, física e moralmente, o exército francês (embora o número de mortos tenha sido praticamente o mesmo dos dois lados) reduzindo a sua capacidade de resposta para a  batalha do Somme, a 300 quilómetros de distância , que já estava a ser planeada pelos chefes militares franceses e ingleses e que se iniciaria em Julho desse ano. Verdun tornou-se uma batalha interminável. Atacantes tornavam-se defensores, e no dia seguinte os papéis podiam inverter-se, num ciclo vicioso, sem que houvesse uma acção decisiva. Mas foi nesta batalha que Philippe Pétain conquistou a distinção de marechal.

Cada nação sofreu mais de 300 mil mortos, o que significou, em média, um total de cerca de 70 mil vítimas mortais por cada mês de combate em Verdun.

Crateras centenárias

Em Fleury- devant-Douaumont passava a linha-de-ferro daquela região e existiam depósitos de munições que interessavam a ambos os lados. Por isso os combates pelo controlo da aldeia foram sem tréguas – embora só a partir de Junho de 1916, quando os alemães redobraram os esforços, numa última tentativa de evitar a ofensiva aliada no Somme.

“A aldeia foi destruída entre Junho e Agosto. As grandes ofensivas foram a 23 Junho e 10 Julho. Em Agosto, houve bombardeamentos enormes”, conta Jean-Pierre Laparra. Os números são brutais: “Foram lançadas 93 mil toneladas de obuses sobre Fleury, o que equivale a um obus por cada cm2 da aldeia.” Foi tudo reduzido a pó: “A aldeia vai desaparecer, vai arder. No fim da batalha, não resta nada.”

O que resta são as marcas na terra deixadas pelos obuses, crateras que deixaram um cenário estranhamente ondulado, como se alguém tivesse varrido os monstros para debaixo do tapete de vegetação que só aparentemente é espesso. “Os buracos que vemos aqui foram feitos pelos últimos obuses que caíram na aldeia”, justifica Laparra. Alguns podem ter sido feitos por verdadeiros monstros como o de 380 milímetros alemão, que trazia uma carga de 850 quilos de explosivos.

Os combates foram infernais, agravados pela fome e sobretudo pela sede, pois os bombardeamentos destruíram as linhas de abastecimento de água e cisternas. No meio de fogo intenso, havia soldados a beber de poças contaminadas com cadáveres. Quando chegaram carroças puxadas a cavalos com barricas de água, houve quase um motim entre os franceses, a correr para lá, aos gritos de “água”, relata o historiador norte-americano Paul Jankowski, em Verdun: The Longest Battle of The Great War (algo como Verdun: A batalha mais longa da Grande Guerra, editado pela Oxford University Press).

Mas os alemães nunca conseguiram tomar Fleury. Os franceses barricaram-se no que restava da aldeia e resistiram. O coronel que comandou a retomada dos caminhos-ferro morreu com boa parte do seu regimento e é homenageado na capelinha construída no local onde ficava a igreja, reduzida a pó, tal como o próprio cemitério.

A destruição era tanta que os habitantes de Fleury não reconstruíram ali a sua vida. Fleury foi declarada pela França “aldeia morta”, e foi assim que passou a ter um maire, um presidente da câmara, mesmo não tendo habitantes.

A aldeia foi integrada na Zona Vermelha, o nome dado em França aos antigos campos de batalha da I Guerra Mundial que, devido à presença de muitos restos humanos e muitos milhões de munições não detonadas, foram expropriados pelo Estado para serem limpos – tanto quanto possível – e preservados, como se fossem cemitérios nacionais. A forma de os preservar foi plantar florestas, muito rapidamente, em cerca de 120 mil hectares, após os trabalhos de limpeza de emergência.

“Restam demasiados obuses no terreno por explodir e há demasiados restos de corpos de desaparecidos na terra”, explica Laparra. “Para além disso, as terras aqui não são muito ricas. A camada de solo é fina, por baixo é rocha. Não estamos na [vizinha] região de Champagne para produzir champanhe. Aqui a vida era criar umas vacas, plantar umas vinhas, algum cereal. As pessoas não tinham grande coisa.”

Logo a seguir à guerra, as aldeias destruídas preservaram o direito a ter o seu presidente. Havia demasiado trabalho a fazer para não terem quem respondesse por elas. “Somos nomeados pelo prefeito [governador civil] e em 1919 havia maires de aldeias destruídas em todo o lado, nomeados para procurar famílias, gerar estados civis – por causa dos muitos mortos havia muito trabalho”, explica Jean-Pierre Laparra.

Passador de histórias

Agora, as suas funções têm muito a ver com o facto de Fleury-devant-Douaumont ser uma atracção turística. “É preciso fazer passar a memória da aldeia, e também fazer a manutenção, para que tudo esteja limpo e em condições. A comuna tem um orçamento de cerca de 20 mil euros anuais. Fizemos alguns restauros na capela, limpar o monumento aos mortos, e acaba-se o orçamento. Mas temos também a missão de falar com os ‘media’, guardar a memória da aldeia.”

O pai de Jean-Pierre Laparra também foi maire numa povoação ali perto, e as raízes da família na zona remontam ao seu bisavô. “Veio para cá, vindo do Sudoeste, com a mulher e o filho, para a construção do forte [de Douaumont]. O meu avô estava em idade de fazer o serviço militar em 1910, e devia ter sido desmobilizado na altura em que a guerra começou, por isso acabou por só ser desmobilizado em 1919. Depois casou-se aqui em Verdun”, conta.

“Não é para nós que é importante manter a memória, é para os jovens que não conheceram nada disto, esta vida das aldeias antigas, dos ofícios que antes existiam”, diz, para explicar porque é importante existir um presidente da câmara nesta aldeia sem habitantes.

“Dizia-se que havia duas maneiras de medir a riqueza: uma era o tamanho do fumeiro que se tinha à porta de entrada, se fosse variado era-se rico. Outra era o número de lavagens de roupa que se fazia. Ninguém tinha muita roupa, por isso era preciso lavá-la frequentemente. Mas se tivesse mais, não tinha de a lavar tanto. Contamos estas histórias às crianças, falamos-lhes sobre os latoeiros, os tanoeiros, as profissões que existiam numa aldeia. Vivia-se sem televisão, sem telefone, à noite iam-se contar histórias ao café. Eu tenho as histórias na cabeça, tenho de as dar aos outros”, exclama.

“Considero o meu papel agora como um transmissor de histórias, de memórias. Talvez tudo isto desapareça, mas é isso que sou, um passador de histórias.”

Turistas e peregrinos

Os maires das aldeias destruídas tiveram que dar resposta logo a seguir à I Guerra ao desejo de visitar o local das batalhas. Não é um fenómeno recente: começou logo a seguir ao Armistício. “Os peregrinos da altura, os antigos combatentes, queriam ver o local dos combates, e sabe-se que a maioria dos soldados franceses passou por Verdun. Criou-se muito cedo um dinamismo de turismo de memória”, explica o presidente da câmara de Fleury.

Os antigos combatentes queriam ver o local onde lutaram, mostrar à família onde sofreram. Os Guias Michelin, aliás, satisfaziam a procura com livrinhos ilustrados recheados de informações sobre os locais a visitar: começaram a ser elaborados ainda em 1917 e, até 1930, foram publicados 29 livrinhos, dos quais são recuperadas algumas páginas nos guias turísticos sobre os campos de batalha franceses editados este ano pela Michelin, aproveitando a boleia das comemorações do centenário da guerra.

O que encontravam na altura era diferente do que se vê agora nas zonas do turismo de memória em torno de Verdun, que ficam todas nesta floresta plantada no pós-guerra. “A primeira coisa que os Serviços de Florestas fizeram foi limpar o terreno de metal, até 1920-22, e depois plantar o maior número possível de pinheiros, que crescem muito rapidamente”, explica Laparra.

A floresta que hoje parece ter sempre existido tem menos de 100 anos: “Não existia de todo antes da I Guerra – não havia árvores neste sector. Toda a aldeia tinha alguns pomares, algumas ameixeiras, era uma aldeia clássica e havia uns pequenos bosques a descer até Verdun, mas não era floresta. Esta só aparece por volta de 1925.”

Mortos do passado

Mas como a demonstrar os motivos pelos quais esta floresta nasceu aqui – para preservar um campo de batalha, onde há restos humanos e munições ainda tão abundantes que 100 anos não chegaram ainda para limpar o terreno –, de vez em quando a brutalidade da guerra irrompe como uma bofetada.

Ao passar num trilho de Fleury, junto a uma pequena ravina onde um marco assinala mais uma exploração agrícola, Laparra conta que foi ali que, no ano passado, uns turistas que iam a passar descobriram ossadas de soldados mortos nos combates.

“Encontrámos um primeiro corpo, depois outro e no total foram 26. Na verdade, não os víamos assim, o médico legista é que contou as cabeças do osso do fémur; todos temos duas e foi assim que chegou à conclusão de que ali estavam 26 corpos”, conta o maire. Ainda tem no telemóvel as fotografias tiradas no laboratório forense do Ossuário de Douaumont, um gigantesco edifício em forma de espada enterrada até ao punho, em sinal de paz, onde estão os ossos de mais de 130 mil soldados de todas as nações beligerantes que não podem ser identificados, nem estão suficientemente completos para que lhes possa ser atribuída uma sepultura.

“Alguns estavam bem preservados, outros eram apenas partes de ossos”, conta. A parte feliz desta história é que foi possível identificar sete destes 26 soldados e devolvê-los às famílias – uma delas na Córsega.

“O obus que caiu ali desfez tudo. Mas já estariam mortos quando o obus caiu. Aquele local da quinta era um posto de triagem, onde se escolhiam os soldados que ainda seria possível tratar e os que já não tinham salvação. Os que estavam mortos ou agonizantes eram colocados num quarto à parte, e houve um obus que lhes caiu em cima”, conta Laparra, que diz que a descrição daquele local como centro de socorros consta no diário de marcha do regimento que defendia Fleury.

Mesmo 100 anos depois, a guerra tem marcas ainda bem vivas no Nordeste de França e Fleury, a aldeia destruída. Com o seu maire, esperam tranquilamente pela vaga de turistas que se anuncia. “Nos próximos anos, esperamos 250 mil a 300 mil visitantes anuais, mas este ano acho que vamos atingir 500 mil. “É muita gente.“


Amanhã: Limpar todas as munições que não explodiram na I Guerra é um trabalho para 200 ou 300 anos
 

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"É preciso fazer passar a memória da aldeia", diz Jean-Pierre Laparra
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A destruição deixada pelos combates de Verdun
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As trincheiras escavadas pelos soldados e a queda dos obuses mudaram o terreno Corbis
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Espaço nos arredores de Verdun onde uma associação de voluntários apresenta a reconstrução de momentos da longa batalha
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