O “milagre” da multiplicação dos chocos em cativeiro foi descoberto por cientistas do Algarve

É possível manter a tradição gastronómica dos “choquinhos à algarvia” sem infringir a lei? Sim, é possível, diz equipa de investigadores, ao fim de três anos de estudos sobre a reprodução destes animais em cativeiro.

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Os investigadores Juan Carlos Capaz (à esquerda) e António Sykes Filipe Farinha/Stills
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Os chocos são muito exigentes com a comida e está a ser criada uma ração para eles Filipe Farinha/Stills
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A estação de investigação do Ramalhete, perto de Faro Filipe Farinha/Stills
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A estação do Ramalhete está num armazém, rodeado de salinas Filipe Farinha/Stills

A disputa pelo poder vai começar. O choco entra em cena, estende os tentáculos. “Calma, calma, não é para me comeres os dedos”, adverte-o o biólogo marinho Juan Carlos Capaz, fornecendo ao animal os camarões para o pequeno-almoço. O molusco mexe e remexe. “Está a vê-lo a fazer sinais com os braços?”, diz o jovem investigador da Universidade do Algarve, chamando a atenção para a coreografia que se desenrola dentro de um tanque, em espaço laboratorial. Estará a querer fazer adeus? A pergunta, em tom de brincadeira, tem resposta séria. “Não, não, está a dizer que quem manda aqui é ele — os chocos são uns animais muito engraçados.”

Produzir chocos em aquacultura é um dos projectos científicos da Universidade do Algarve, na estação do Ramalhete, situada em plena ria Formosa, perto de Faro e do seu aeroporto. Os resultados alcançados indicam que esta será a maneira de não se perder o típico prato dos “choquinhos à algarvia” — que só continua a existir porque há pesca clandestina. Os choquinhos (e os carapaus pequenos, ou “jaquinzinhos”) — embora a lei interdite a captura de espécies infantis — não deixam de ser comercializados e apreciados.

Os investigadores do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve chegaram à conclusão de que é possível manter a tradição gastronómica, sem colocar em causa a sustentabilidade da espécie, recorrendo à criação em cativeiro. “Alcançámos já alguns resultados que contrariam o publicado em revistas científicas sobre a espécie”, diz António Sykes, coordenador deste projecto de investigação.

O próximo passo, dentro de dias, vai ser a instalação de um big brother para confirmar o frenesim reprodutivo que se vai dar no interior dos tanques. Como o Verão trouxe a subida da temperatura da água, acabaram-se jogos de sedução e namoro — estamos na época alta da multiplicação da espécie. Durante o Verão, uma fêmea pode pôr 6000 ovos, e a seguir morre.

Das experiências levadas a cabo, os cientistas constataram que a adaptação do choco ao meio artificial não é difícil, mas a dieta exige requinte — camarinha (camarão pequeno) é o prato preferido. Os estudos decorrem há cerca de três anos, prevendo-se que em Março do próximo ano os resultados sejam conclusivos. A nível europeu, este é o único centro de investigação na área da reprodução de chocos em aquacultura, fornecendo mesmo animais para investigação em França e na Alemanha.

Neste momento, ainda é “proibitivo” produzir chocos em aquacultura, explica António Sykes, por causa do preço da ração que comem. Mas, para tornar viável a exploração em aquacultura, está a ser testada uma ração à base de peixe, criada no Centro de Ciências do Mar. À primeira vista, o alimento foi aceite.

“Provaram, não cuspiram”, diz António Sykes, lembrando que os chocos são “muito inteligentes e não comem tudo o que lhes aparece pela frente”.

Juan Carlos Capaz, nascido na Venezuela e há vários anos em Portugal, é dos mais recentes investigadores da equipa de António Sykes. “Estou encantado”, confessa, referindo-se à oportunidade que teve em dar continuidade aos estudos, depois de um mestrado na área das pescas. O jovem dedica especial atenção ao comportamento de três chocos machos, já velhotes, retidos num tanque. As tentativas que fazem para lhe morderem os dedos, quando lhes fornece as refeições, não passam de brincadeiras entre amigos.

António Sykes salienta que, de acordo com o que está publicado sobre a longevidade destes animais, os três exemplares já deveriam ter morrido, mas na verdade estão vivos e cheios de energia. “Um caso de estudo”, brinca. O mais pequeno, observa, “sofre ataques dos maiores”. Motivo? “Pensam tratar-se de uma fêmea, estão a tentar copular”, explica. “Vamos montar um big brother, instalando câmaras em oito tanques, para monitorizar o que se está a passar.”

Ria Formosa, uma jóia
Chegam entretanto à estação-laboratório dois outros professores-investigadores da Universidade do Algarve: João Silva, especialista em plantas e ervas marinhas, e Jorge Gonçalves, cientista na área das pescas. O acesso faz-se pela estrada que contorna o aeroporto. A meio do percurso entra-se num caminho de terra batida, por entre sapais, até chegar à estação do Ramalhete. O laboratório-piloto do Centro de Ciências do Mar está montado num armazém, rodeado de salinas, que serviu de apoio às antigas armações de atum da Companhia de Pescarias do Algarve.

“Uma jóia”, observa Jorge Gonçalves em relação à grande “maternidade” que é a ria Formosa, funcionando ao mesmo tempo como “berçário” para os robalos e as douradas, antes se aventurarem na partida para o mar.

Os aviões, voando a baixa altitude, chegam e partem num vaivém constante. O abanão ruidoso que provocam não deixa de fazer tocar os sensores da natureza, mas de forma superficial. Os animais e as plantas não revelam sinais de ameaça. “Estão habituados”, diz Jorge Gonçalves, referindo-se aos peixes, a nadar nos canais da ria como se nada se passasse à sua volta.

Os cavalos-marinhos tornaram-se um ícone desta zona, classificada como Parque Natural, mas o professor-investigador lembra que é preciso “defender a sustentabilidade das pescas” e esse trabalho é uma das atribuições do Centro de Ciências do Mar, onde duas centenas de pessoas trabalham para a mesma causa. “Sem as plantas, os cavalos-marinhos teriam dificuldade em se proteger”, diz por seu lado João Silva, destacando que é biodiversidade da ria Formosa que “faz atrair ao Algarve investigadores de todo o mundo”.

Juan Carlos Capaz, licenciado em biologia marinha pela Universidade do Algarve, está a dar os primeiros passos na carreira de investigador. Após um mestrado em pescas, passou a trabalhar na estação do Ramalhete, com o apoio de uma bolsa de investigação da Fundação para Ciência e a Tecnologia. “Dos 18 alunos da turma, fui o único que fiz a especialização em pescas.”

Os iates, saídos da marina de Vilamoura, por volta do meio-dia, dirigem-se para a ilha da Culatra. No restaurante, à espera dos turistas, está o peixe e o marisco vindo directamente da ria para o prato. O passeio ao longo da costa, quando a velocidade é grande, só permite observar a beleza da ria pelo canto do olho esquerdo. A grande maternidade onde se criam as ostras e amêijoas que os franceses depois importam fica do outro lado da praia.

O ecossistema, que incorpora no seu seio um aeroporto internacional, estende-se por uma extensão de 60 quilómetros, desde a Quinta do Lago (Ancão) até à praia da Manta Rota. Pelo meio encontra-se as chamadas ilhas-barreira, algumas ainda com tradição piscatória, outras quase exclusivamente ocupadas com casas de veraneio. “Hoje em dia já não se faz investigação por fazer — faz-se investigação porque é necessário encontrar respostas para os problemas”, comenta João Silva, destacando a importância das plantas na cadeia alimentar.

Um “frenesim” sexual
Apesar de ser considerada um dos ecossistemas de referência na Europa, a ria Formosa tem poucos recursos aplicados na fiscalização. De resto, é o que acontece “com todos os parques naturais do país”, lamenta Jorge Gonçalves. No seu entender, deveria ser destinada uma área para “reserva integral”. Mas para que tal venha a acontecer, “falta fazer o mapeamento dos habitats e das comunidades de uma forma integrada”. O colega João Silva acrescenta que existe um Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC), “mas é mais dirigido à ocupação turística, não existe um plano de gestão da natureza”.

As ciências do mar são uma das áreas onde a Universidade do Algarve se tem distinguido. Mas, por ironia, o investimento no conhecimento sobre os recursos marinhos coincidiu com a diminuição da frota pesqueira. “A ria Formosa é, na Europa, um dos sítios mais importantes das reservas marinhas”, sublinha ainda João Silva. A ocupação urbana, justifica, “não atingiu a pressão que alcançou noutras regiões, nomeadamente na vizinha Espanha”.

Além disso, enfatiza Jorge Gonçalves, “não há indústria e o subdesenvolvimento sempre contribuiu para a conservação da natureza”. A melhoria do sistema de tratamento de águas residuais, nas duas últimas décadas, elevou a qualidade ambiental. “Temos estudos que apontam, em termos de comunidades de peixes, para uma melhoria dos anos de 1980 para os anos 2000.”

Este período coincide com os investimentos mais significativos na construção em estações de tratamento de águas residuais (ETAR), que até a essa altura despejavam os esgotos da cidade de Faro directamente na ria. De resto, é isso que ainda se verifica em relação a uma parte da zona de Olhão. No ano passado, a empresa Águas do Algarve, nas análises às águas da ria, próximo das ETAR de Olhão-poente e Faro-nascente, detectou uma quantidade de coliformes fecais que estava mais do dobro acima dos parâmetros considerados aceitáveis. Ora é no Algarve que se encontram mais de 80% das amêijoas produzidas em Portugal.

Também o choco, espécie com a qual os espanhóis inventaram algumas “tapas”, encontra na costa algarvia um habitat de eleição para se reproduzir. E, de volta à estação do Ramalhete, Juan Carlos Capaz anda de tanque em tanque a observar o comportamento destes moluscos a fazer “olhinhos” às fêmeas, sem lhes darem tréguas.

Na época quente, comenta o biólogo, “o frenesim reprodutivo é tão elevado que as fêmeas morrem por exaustão”. Cada fêmea — cujo ciclo de vida não vai para além dos quatro meses de tempo quente, podendo chegar aos dez meses na estação fria — chega a produzir 6000 ovos. Um número que António Sykes considera ter “potencial” para a produção em aquacultura, permitindo também assim a multiplicação da espécie em cativeiro.

Notícia corrigida a 11 de Agosto às 11h26: Juan Carlos Capaz não nasceu na Argentina, mas na Venezuela 

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