Portugal na lapela, Portugal na forca

De bandeira nacional na lapela, enchem a boca com “Portugal”. Mas não governam Portugal.

O dadaísmo procurava fazer chegar a obra de arte às massas, não através duma “pedagogia popular”, mas sim através da “atualização da obra”, que era colocada no centro de um escândalo – como diz Walter Benjamin.

A noção de obra como microcosmos autossuficiente para uma comunidade artística em recolhimento dava lugar ao estilhaçar das fronteiras entre arte e vida. Os materiais utilizados eram despojados do “caráter de autenticidade” ou da “aura” – “degradados” – e assim subordinados ao princípio da sua reciclagem. O efeito era uma distração das mais veementes, na medida em que a obra, mal se apresentava ao observador, logo dele se desviava para se dirigir a qualquer um. Infalivelmente, dava origem a fações. Dividia.

Reciclar fotografias, fragmentando-as e montando-as em imagens compósitas, era também o que fazia, pela mesma altura, John Heartfield, um dos cronistas mais arrasadores da República de Weimar. George Grosz foi seu colaborador nesses primórdios da “fotomontagem”. É, aliás, bem visível na pintura e nos desenhos de Grosz o mesmo gesto de fragmentação e montagem que lhe permite surpreender como ninguém o grotesco inquietante do quotidiano. Subjacente a ambos está a tradição da caricatura, que sempre explorou a montagem de fragmentos potenciadora da produção de sentido pelo observador. Rafael Bordalo Pinheiro serve de exemplo: no António Maria e nos Pontos nos ii não faltam momentos geniais em que a montagem de “citações” das esferas social, cultural e política é mais eloquente do que um tratado. Está lá tudo.

No ready made passa-se da citação à reciclagem. É o caso de Portugal na Forca, de Élsio Menau – arte pública colocada num terreno às portas de Faro, na qual a bandeira nacional é o material reciclado. O conjunto – a forca e a bandeira “estrangulada” – é exposto à observação dos passantes. Daí o motivo de escândalo, a ponto de a GNR ter sido chamada a intervir e os tribunais chamados a pronunciar-se. Se a obra fosse mostrada numa galeria ou num museu, ou já considerada tão “canónica” como, por exemplo, A Fonte, de Marcel Duchamp, o escândalo seria, decerto, bem mais mitigado ou até inexistente.

A diferença entre um regime totalitário e a nossa ordem constitucional é que, num caso, a obra teria sido sumariamente destruída ou despachada para uma “exposição de arte degenerada” e, no outro, são os próprios tribunais que, com lúcido e ponderado respeito pela lei fundamental, nela reconhecem o princípio da liberdade de expressão inerente à criação artística.

Liberdade de expressão ou liberdade de dar testemunho. Com efeito, o autor capta numa intuição fulgurante – e com uma eloquência mais acutilante do que todas as análises e todos os discursos – a gravidade da situação que atravessamos. Ninguém escapa à interpelação. As “imagens dialéticas” disparam em todas as direções.

“Portugal competitivo”. “Aliança Portugal”. “Governo de Portugal”. De bandeira nacional na lapela, enchem a boca com “Portugal”. Mas não governam Portugal. Jogam à cabra-cega. De olhos vendados pelo monetarismo, precipitam-se, a cada passo, aos tombos, nos buracos que eles próprios escavaram: o da dívida; o da emigração, sobretudo a jovem e qualificada; o do desemprego, da pobreza e da desertificação; o da estagnação e do atraso, inclusive na economia, acelerado pela destruição em curso na ciência, na educação, na saúde, na justiça, etc.; enfim, o da crise demográfica, um poço sem fundo provocado pelo desmantelamento do Estado social.

Portugal na lapela. Portugal na forca.

Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)

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