From What Is Before, seis horas para desenterrar a verdade das Filipinas

Lav Diaz filma momento esquecido da história do seu país. Como o brasileiro Gabriel Mascaro, olha para comunidades remotas.

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Não é uma obra tradicionalmente narrativa, antes uma "acumulação" de episódios que constroem conjuntamente um mosaico panorâmico da vida de uma aldeia nos confins das Filipinas

Digam o que disserem, vai ser difícil encontrar outro filme em Locarno que assuma contornos de “acontecimento” como este. Logo antes do início da primeira projecção pública de From What Is Before (Concurso Internacional) o filipino Lav Diaz avisou ao que vinha: “Bem-vindos ao nosso pesadelo, e espero que saiam dele compreendendo mais alguma coisa sobre as lutas pela sobrevivência da humanidade”.

É isso que From What Is Before é, ao longo de quase seis horas.

De certo modo, o filme mais próximo que nos vem à cabeça é a ficção que Wang Bing levou a Veneza em 2010, The Ditch: um filme doloroso, brutal, um buraco negro que suga tudo à sua volta.

Há, ainda por cima, algo de estranho, de quase inexplicável, em ver esta obra opressiva, claustrofóbica, épico sobre a pobreza e a dignidade ambientado nas Filipinas profundas de 1972, antes da lei marcial instaurada por Ferdinando Marcos, na verdadeira “estância de férias” que é Locarno em época alta, com os descapotáveis de marca e os turistas em família a passearem pelos jardins da cidade. Mas se não fosse um festival como este, talvez From What Is Before – produção hiperindependente feita com um mínimo de meios e os actores a desdobrarem-se como assistentes de produção, figurinistas ou cenógrafos – não fosse sequer mostrado fora das Filipinas.

Mesmo assim, a sua radical austeridade – 338 minutos de longuíssimos planos estáticos a preto e branco, muitas vezes sem diálogo, não raras vezes marcados pelo som incessante da chuva que cai nesta zona remota das Filipinas como um dilúvio que a castiga – já garantiu o seu futuro. À imagem dos filmes anteriores de Lav Diaz, e sobretudo Norte — The End of History, que catapultou o nome do cineasta filipino para a primeira linha do cinema de autor em Cannes 2013, From What Is Before é daquelas obras que vão ser mais faladas do que vistas, quase impossível de exibir comercialmente. 

Não é uma obra tradicionalmente narrativa, antes uma “acumulação” de episódios que constroem conjuntamente um mosaico panorâmico da vida de uma aldeia nos confins das Filipinas. O efeito é de uma angústia existencial difusa mas opressiva, que obriga o espectador a instalar-se na duração e no desconforto, numa mera aproximação do sofrimento quotidiano e da simples luta pela sobrevivência desta gente entre a religião e a superstição, entre o desespero e a resignação estóica, onde a sobrevivência é quase apenas subsistência. 

Béla Tarr é uma comparação evidente; poder-se-á também citar Pedro Costa ou Apichatpong Weerasethakul, mas talvez  fosse mais legítimo evocar as experiências de endurance de Wang Bing ou Claude Lanzmann. Em todo o caso, não é certo que consigamos apreender totalmente o mergulho a que Diaz nos força nesta realidade, que inclui, por exemplo, a reprodução de rituais perdidos desde o período pré-Marcos, a dimensão histórica de um tempo esquecido que o filme adquire; como se fosse um dever de memória onde cada minuto se sente. A certa altura, uma das personagens diz: “Nunca esperei contar esta história a outras pessoas. Já tínhamos enterrado esta verdade”. From What Is Before desenterrra-a. 

Um outro tipo de verdade, também ambientado numa comunidade remota, é aquele proposto pelo documentarista e vídeo-artista brasileiro Gabriel Mascaro na sua primeira experiência na ficção. Ventos de Agosto (Concurso Internacional) partilha com o filme de Diaz a sensação de extrema pobreza, passando-se numa comunidade remota no Pernambuco onde o mundo moderno é algo de longínquo e distante, e onde o ser humano está em constante luta para subsistir numa natureza impiedosa que as alterações climáticas vêm tornar ainda mais dura. 

Não por acaso, é a morte que – um pouco à imagem dos filmes de Apichatpong Weerasethakul – “divide” o filme em dois, um “antes” e um “depois” de um cadáver trazido pelo mar que muda de vez o mundo de Jeison e Shirley, ele um habitante local, ela uma citadina transplantada. Esse cadáver coincide igualmente com a chegada de um investigador que vem gravar o som do vento (interpretado pelo próprio realizador), tornando visível (talvez demasiadamente) a dimensão de “paraíso perdido” que o filme busca sem forçosamente a encontrar.

Trabalhando com actores não profissionais e diluindo as fronteiras entre realidade e ficção com uma sensualidade à flor da pele, Gabriel Mascaro não acerta inteiramente no equilíbrio entre abertura ao acaso e estruturação narrativa. Mas o seu filme tem qualquer coisa do Glauber Rocha de Barravento, e é suficientemente atento para confirmar o bom momento do cinema brasileiro “não alinhado”.   

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