A faixa

É melhor, bem melhor, não ficar do lado de ninguém, senão do lado de todas as vítimas.

Muito pouco sabemos da violência em Israel e na Palestina. Redutores são mesmo alguns comentários, quase sempre redigidos sob o critério da emoção, e em especial em favor da causa palestiniana, como é habitual nos casos em que instintivamente se adere ao lado do mais fraco.

A violência chega-nos pelos jornais e pela televisão e rapidamente se torna ficção, que é o que acontece às palavras e às imagens quando, saturadas em abundância, acabam intercaladas por outros conteúdos, pela publicidade, e pelo “habitat familiar” de que fala Roland Barthes em relação à língua. Pela sua dimensão, a operação Limite Protector é a mais intensa desde a famosa Chumbo Fundido (ou Chumbo Endurecido) de 2008, na altura tão repudiada por Stéphane Hessel. Nesse tempo, houve quem dissesse ser “inadmissível que judeus possam perpetrar crimes de guerra”. Em ambos os casos temos a figura do Hamas, representante político da Palestina, escudado na sua resposta ao isolamento e bloqueio dos habitantes da Faixa de Gaza e na questão dos territórios ocupados. Parece reduzir-se a uma questão de espaço vital esta guerra – não esquecendo os paradigmas religiosos. Contudo, também não deixa de ser lamentável que a Palestina seja refém de uma autoridade política que instiga actos de terror – o Hamas. Assim como, do outro lado, o Likud veja reforçado o seu fundamentalismo, acobertado pelo novo Presidente, Reuven Rivlin.

Acusa-se Israel da desproporção de meios e é difícil rebater esses argumentos, perante evidências, tão lastimáveis quanto caricatas, como a de ouvir Shimon Peres lamentar a morte de quatro crianças numa praia. Por isso, a tentação é comparar o incomparável, isto é, afirmar, como já aqui várias personalidades o fizeram, que aquilo a que se apelida de "genocídio do povo palestiniano" é semelhante (descontados os números) ao perpetrado pelo Exército alemão durante o III Reich. Primeiro: não há nada de semelhante com aquela ignomínia. Segundo: não me recordo de ter lido nada sobre provocações violentas dos judeus à Alemanha dos anos 30. Terceiro: os números contam.

Corremos o risco de passar sobre uma série de pormenores, se atalharmos de forma directa, pelo exercício do “e se estivéssemos na pele de?”. Se estivéssemos na pele dos milhares de palestinianos que, nestas horas, vêem os irmãos, os pais, os filhos morrer debaixo dos escombros, nos hospitais? É certo: não é possível estar na pele deles. Mas será possível entrar na pele dos que trazem a herança da maior catástrofe da história e que, a todo o momento, se sentem acossados pelos países em seu redor, incluindo aqueles que os querem ver dizimados? Tentemos imaginarmo-nos uns aos outros.

Recebi, no dia em que escrevo, este texto de uma amiga israelita, Nora Gaon, pedagoga no Spanish Desk International Department do Guetto Fighters House: “Já é parte da rotina diária ver, pela manhã, quantos soldados e quantos civis, entre eles crianças, morreram esta noite. É macabro e diria até doentio observar as fotos que surgem no diário, com os nomes dos rapazes e, enquanto leio, penso e espero que não seja o nome do amigo de… do filho de… nem o neto de… que sei que nestes momentos estão ali a lutar. E essas fotos, repletas de sorrisos gelados, fazem-nos começar outra manhã com uma total incerteza. Não se vê o final desta situação [é interessante chamar a esta guerra tão cruel para ambos os lados 'situação']. Os cessar-fogos terminam antes de haverem começado. O ódio é a substância mais corrosiva que existe, chega à profundeza da alma e cega. As fotos desses rapazes com os seus uniformes continuam a observar-nos, como também a de essa mulher em busca da família sob os escombros do que foi a sua casa. Essas imagens acusam-nos, os olhos dos soldados esfumam-se no pranto, e o grito desgarrado e surdo dessa mulher invade-me a alma.”

É melhor, bem melhor, não ficar do lado de ninguém, senão do lado de todas as vítimas. De contrário, há a maior das possibilidades de nos enganarmos na nossa parte de palavra. Amos Oz conta que a “síndrome de Jerusalém” é o instinto incontrolável de alguém pegar fogo a uma mesquita, a uma igreja ou a uma sinagoga. O que acontece é que ninguém ouve ninguém e esse é o perigo: o de sermos todos surdos.

Quanto a Deus e aos que o invocam, talvez seja bem melhor a moderação. Aparentemente, Deus aqui só atrapalha.

Professor

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