A velha caldeira da única fábrica de lápis do país é uma sala de exposições

A Viarco continua a abrir as portas à arte e há iniciativas improváveis que podem acontecer em São João da Madeira.

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"Abrimos as portas e deixamos as pessoas produzir" Adriano Miranda

Uma folha branca não é apenas uma folha branca para José Miguel Araújo, dono da Viarco, da única fábrica de lápis no país, situada em São João da Madeira. Essa folha pode ser um chapéu, um testemunho de amor, um rastilho para acender uma fogueira. O empresário, licenciado em Marketing e Relações Públicas e que tem nas mãos uma fábrica centenária, não se concentra apenas na produção de lápis, nem recebe somente fornecedores, clientes e potenciais interessados nos seus produtos. Ele sabe que a arte e a gestão podem andar lado a lado, que a arte também faz sentido num edifício de traça antiga, em salas cheias de máquinas, em paredes exteriores. “Uma empresa é muito mais do que um negócio. Uma empresa também pode gerar bem-estar social que nós promovemos de uma forma diferente”, afirma. E o lucro poderá ser precisamente essa herança que advém da arte.

“A criatividade pode vir de qualquer lado, abrimos as portas e deixamos as pessoas produzir”. O compartimento da antiga caldeira da Viarco, do tempo em que também produzia chapéus, é agora uma sala de exposições temporárias.

Neste momento, tem uma exposição de moda. O fotógrafo Rui Ferreira arranjou o espaço, fez produções de moda ao lado das máquinas, e recuperou algumas grades de transporte dos lápis para emoldurar as fotos. No piso de cima, na sala onde se produziam chapéus, e que ainda guarda maquinaria e velhas máquinas de costura, está outra zona de criação. Pedro Alves, designer de moda, tem ali o seu local de criação com vários sapatos nas bancadas de madeira. Luísa Vidal também usa o local para o trabalho de campo da sua tese de doutoramento que incide no ensino da arte como meio de integração social. A investigadora está a analisar o que acontece na vida de 12 jovens.

O artista plástico Ricardo Pistola partilha o espaço para desenhar e testar os produtos que a Viarco produz e que faz questão de saber como se comportam antes de os lançar no mercado. Pistola também dedica o tempo a estruturar as linhas mestras do serviço pedagógico que a Viarco quer criar, numa bolsa de doutoramento cedida pela própria fábrica. “Temos criado produtos inovadores e queremos continuar a tirar coelhos da cartola”, revela José Miguel Araújo.

Concertos, teatro, vídeo-projecções, exposições temporárias, residências artísticas, sessões fotográficas. Se ainda não aconteceu, pode acontecer a qualquer momento porque essas ideias moram na cabeça do dono da Viarco. “Damo-nos com toda a gente, não temos cor política, nem religião”, adianta.

Há poucas semanas, o piso da produção foi palco de um concerto pouco comum para assinalar o encerramento do projecto Viarco Express, que reuniu cerca de 100 desenhos feitos com 10 lápis que passaram de mão em mão por vários artistas – Paula Rego, Julião Sarmento, Joana Vasconcelos, entre outros. Um momento musical protagonizado pela Orquestra Criativa de Santa Maria da Feira que numa pequena criação improvisada usou xilofones, flautas, trompete, fagote e voz para acompanhar os barulhos das máquinas que dão vida aos lápis. Dez jovens dos 12 aos 14 anos, sob os comandos do maestro Aleksandar Caric, tocaram ao som de melodias industriais.

No mesmo dia, os Urban Sketchers tiveram à disposição uma parede da Viarco para desenharem o que lhes apetecesse com grafite cedida pela empresa - uma iniciativa integrada no 7.º Encontro Internacional de Ilustração de São João da Madeira que está a dinamizar várias actividades até ao evento agendado para Outubro.

As pinturas estão lá e quem percebe da matéria está a analisar de que forma se comportam os grafites utilizados em diferentes condições atmosféricas, se resiste à chuva, como reage ao calor. “É possível criar projectos que gerem benefícios para toda a gente”, sublinha o empresário.

A Viarco também faz parte do projecto Turismo Industrial de São João da Madeira. Das fábricas que integram esse roteiro turístico com guias à disposição, tem sido a mais visitada com um crescimento, até ao momento, de cerca de 40% em relação a 2013. Este ano, mais de 7500 pessoas já quiseram conhecer a única fábrica de lápis portuguesa. Um sinal importante para quem conduz os destinos da empresa. 

“Nunca me meto numa coisa que vá num só caminho”, diz José Miguel que já fazia parte da Viarco, mas que em Maio de 2011, em conjunto com a mulher, adquiriu a fábrica. “No mês em que Troika entrou em Portugal, comprámos a fábrica, o que era impensável, inaceitável, com o mundo a explodir, as linhas de crédito a desaparecerem”. Olhou em frente e segurou a fábrica com perda na distribuição em Portugal, mas com a conquista de mais mercados no exterior. “Temos uma fábrica com mais de 100 anos, a nossa obrigação é preparar os próximos 100 anos e só com alicerces fortes e profundos é que o conseguimos fazer”. A arte tem aqui o seu papel. Não apenas para usufruto próprio, mas também para criar relações, para criar laços.

Os benefícios que nascem dos lápis 

 Em 2006, a Viarco, o Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos e a Associação Cultural Saco Azul iniciavam um projecto artístico que desafiou alguns dos nomes mais sonantes da arte nacional.

A Viarco Express usou a regra das estafetas e distribuiu 10 lápis que passaram de mão em mão, como um testemunho, criando uma espécie de cartografia contemporânea da arte portuguesa, reunindo várias vertentes artísticas. Paula Rego, Joana Vasconcelos, Siza Vieira, Ângelo de Sousa, Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, entre muitos outros, participaram nesta viagem.

Os desenhos produzidos nesse percurso assinalaram os 100 anos da Viarco e estiveram expostos no Museu da Presidência da República.

O projecto terminou há poucas semanas com os desenhos a serem adquiridos pelo Hotel Oliveira de Guimarães. Mais um projecto com a assinatura dos lápis Viarco. A empresa de São João da Madeira fica com um terço do valor dessa compra que vai aplicar em material escolar para distribuir por alunos carenciados. “Devolvemos à comunidade o que recebemos com esta criação cultural”, refere o dono da Viarco.

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