Um piano em demanda espiritual

Entre o mar de guitarras que marca este Jazz em Agosto, destaca-se amanhã a notável excepção do duo que une Matthew Shipp ao saxofonista Evan Parker, uma das formações preferidas deste que é um dos mais brilhantes intérpretes do piano contemporâneo.

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Matthew Shipp actua neste Jazz em Agosto ao lado de Evan Parker CAROLINE FORBES

Gary Jones é um saxofonista cuja importância será tratada pela História com o mesmo desprezo que dedica à maioria dos músicos. Não é fácil descobrir-lhe o rasto, mesmo nos infinitos meandros da Internet que quase proíbem o anonimato. Ficará, portanto, confortavelmente à sombra, num lugar onde todos o poderão pisar sem ninguém se aperceber disso. Mas aconteceu com Matthew Shipp quando o pianista norte-americano descobriu que deixara de ser um competente replicador de linguagens alheias e se viu a descolar rumo a um destino que nem o próprio poderia antecipar. “Isso aconteceu numa jam session em Agosto de 1983”, concretiza Shipp. “Quando acabámos de tocar, ouvimos a gravação e perguntámo-nos: ‘O que se passou aqui?’ Depois voltámos a ouvir e percebi que estava a fazer coisas que não teria conseguido alcançar três semanas antes. Foi aí que senti a minha linguagem a iniciar-se. Antes podia ter-me cruzado com pistas disto ou daquilo, mas nunca tinha sido algo realmente consistente."

“Há uma manhã em que acordamos e conseguimos tocar de uma maneira que antes nos estava vedada”, reforça Shipp. E essa sensação de saltar de um pântano partilhado com milhares de outros praticantes da mediania e da insignificância, podendo, afinal, reclamar um lugar na História da música, faz-se acompanhar, diz o pianista, de “uma espécie de sentimento messiânico de que estamos a quebrar todos os padrões do passado e a desbravar algo de realmente novo”. A verificação dessa certeza, como é evidente, não é especialmente importante no imediato. É o sentimento em si que importa, como potenciador da busca por uma obra que, mais tarde, possa constituir um novo paradigma – mesmo que pessoal. Matthew Shipp fala por isso num “ponto de libertação” nesse gesto de autonomia, em que o músico se vê a si mesmo a desligar-se e a entrar em ruptura com o historial do instrumento, insuflando o seu papel pioneiro.

Só que mesmo quando esta sensação não é um delírio hiperbólico e algures lá no fundo, raspando bem, tem qualquer apara de verdade, o pianista acredita que o grande desafio para qualquer descobridor de caminhos é gerir a distância em relação à tradição. “Não há nenhum percurso completamente novo, e mesmo na cabeça de qualquer pessoa que invente um novo estilo há tanto a necessidade de romper com todos os padrões que o antecederam como a de se reconciliar com a História. É difícil dizer como se faz esta síntese – simplesmente toca-se e deixa-se que as peças caiam e encaixem naturalmente onde tiverem de cair.” O que sugere também que convicção exclusiva de que há um corte integral com a linhagem do instrumento, qualquer que ele seja, apenas alimentará um estado fantasioso que tenderá a autodestruir-se, mais revelador de autismo artístico do que propriamente de um génio em acção.

O ponto seguinte da biografia de Matthew Shipp é algo que o músico gosta de ver como predestinação. Ao mudar-se para Nova Iorque, em 1984, acabaria por instalar-se durante um par de meses na casa onde muitos anos antes vivera Charlie Parker. “Estava desesperado à procura de um sítio, não queria saber se era a antiga casa do Charlie Parker ou do Charles Manson”, graceja. “Se olhar com alguma grandiosidade para toda a minha vida, direi talvez que o foi o destino que me colocou a viver na casa de Charlie Parker.” Já então a singularidade da estética de Shipp, recuperando o tom altamente percussivo e lúdico de Thelonious Monk e a elegância prodigiosa vinda de Andrew Hill, o distinguia e reclamava um lugar destacado na cena nova-iorquina. A associação no final da década ao David S. Ware Quartet proporcionar-lhe-ia a escalada em flecha para uma visão extremamente original do piano, fazendo-o sobressair debaixo do manto denso com que Ware cobre cada tema e que torna a sua música uma experiência muitas vezes sufocante.

“Ele tinha acabado de gravar o álbum Passage to Music (1988), em trio com o William Parker e o Marc Edwards, e quando a editora lhe pediu para gravar mais alguns álbuns decidiu acrescentar um piano ao grupo. Começou por procurar pianistas que não soassem ao Cecil Taylor e eu fui recomendado. Assim que tocámos a primeira vez juntos, sentimos uma irmandade entre nós e partimos daí.” Estava formado o lendário e difícil David S. Ware Quartet. Shipp não gosta, no entanto, dessa noção de impenetrabilidade frequentemente associada a Ware. “Alguém que oiça apenas Céline Dion”, argumenta, “não irá compreender porque fazemos aquilo que fazemos, mas não é por isso que interpretamos a nossa música como sendo difícil: é simplesmente aquilo que nos sai em conjunto, percebendo a sua motivação e a tradição que lhe está por trás”.

A arte do duo

De regresso ao Jazz em Agosto na companhia do saxofonista inglês Evan Parker, Matthew Shipp actuou já este ano a solo nos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, e passou pela Gulbenkian há dois anos com o seu trio. Mas as situações de solo e trio inscrevem-se em cenários totalmente distintos deste em que agora o ouviremos. O trio de piano, contrabaixo e bateria é uma formação com um peso histórico no jazz, revelando-se impossível não entrar em diálogo – como o pianista acima referia – com esse legado. “No trio”, garante, “somos absorvidos por toda essa tradição, assim como na situação de solo sou puxado para uma tradição específica, quer seja Art Tatum, Cecil Taylor ou mesmo Keith Jarrett [de quem Shipp é bastante crítico, alegando que Jarrett vê nada menos do que um deus sempre que se olha ao espelho].” A par disso, o universo solístico de Shipp desvela amiúde o seu saber enciclopédico e os recursos que facilmente sonega à música clássica, chamando a si os fantasmas de Debussy, Scriabin ou Bach.

A presença de Bach é, aliás, amplamente justificada. Shipp recorda como rastilho para a sua carreira no piano “ter ouvido em miúdo o órgão na igreja” que os pais frequentavam. Quando pediu ao organista algumas aulas, este respondeu-lhe que antes teria de aprender piano. E foi isso que fez ainda na infância, sendo de tal forma sorvido pelo instrumento que não mais procurou o organista. Ficou, no entanto, esse desígnio de encontrar a religião nas entrelinhas da música. “Sou muito influenciado por toda a questão pós-Coltrane de usar a música como demanda espiritual”, confessa. Quando em modo solitário, ao piano, todo esse mundo emerge facilmente, uma vez que, mesmo incluindo composições próprias ou standards, tudo aquilo que Shipp se propõe fazer é “pôr a bola a rolar”, desencadear o discurso e só lhe conhecer as curvas a cada segundo. Mas se Bach pode pôr a cabeça de fora, também as experiências brilhantes com o mundo do hip-hop (Antipop Consortium, El-P, DJ Spooky) não se deixam camuflar.

Quando numa situação de duo, uma das suas preferidas se partilhada com um saxofone – e que explorou já com Rob Brown, Ivo Perelman ou Roscoe Mitchell –, a tradição com a qual se relaciona é mais esparsa e muito menos impositiva de qualquer tom. Matthew Shipp chama-lhe “uma interacção crua entre duas pessoas”, em que ambas são responsáveis por criar espaço e tempo na música, e em que tem de inventar um papel para a sua intervenção criativa. Também ao lado de Parker, com quem se cruzou nos Springhell Jack e gravou os álbuns Abbey Road Duos (2006) e Rex, Wrecks & XXX (2011), o importante é largar certezas e ir ao encontro do outro. Onde quer que isso seja.

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