Millôr, o escritor que usava o próprio nome como matéria-prima

A primeira noite da Festa Literária Internacional de Paraty homenageou Millôr Fernandes. Do olhar do crítico de arte Agnaldo Farias, que analisou a sua obra gráfica às memórias do seu amigo Jaguar, o cartoonista e fundador de O Pasquim.

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O escritor Millôr Fernandes David Zinggo/Acervo Instituto Moreira Salles
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Uma das diversas assinaturas de Millôr no espólio do Instituto Moreira Salles

O crítico de arte Agnaldo Farias já tinha avisado que este ano a conferência de abertura da 12ª Festa Literária Internacional de Paraty ia ser diferente: ele não iria fazer uma palestra.

O que ele fez na quarta-feira à noite, naquela cidade brasileira onde até domingo acontece o maior festival literário brasileiro, foi analisar o trabalho do autor homenageado deste ano, o escritor e cartoonista brasileiro Millôr Fernandes (1924- 2012) como artista plástico, ao mesmo tempo que mostrava as suas obras. E foi comparando o seu trabalho ao de artistas como Paul Klee, Picasso, Miró ou Iberê Camargo.

Por isso, quando subiu ao palco da Tenda dos Autores, que nesta edição não tem o aspecto imponente de anos anteriores mas contém os mesmos 850 lugares do ano passado, Agnaldo Farias tinha atrás de si ecrãs onde mostrava desenhos e cartoons daquele que considera ser um dos maiores pensadores que o Brasil já teve. “O Millôr é uma figura de facto singular, um grande pensador, mas o lado plástico é igualmente importante e foi pouco avaliado até hoje”, disse o crítico de arte brasileiro, acrescentado que a quantidade de material que Millôr produziu ao longo dos anos foi avassaladora. 

Esse material está desde a sua morte, em 2012, depositado no Instituto Moreira Salles, que está a estudar o espólio gráfico do artista (mais de 9 mil itens) e lança na FLIP o livro Millôr 100+100: desenhos e frases com cartoons escolhidos pelo cartoonista Cássio Loredano e frases seleccionadas por Sérgio Augusto. Alguns foram exibidos na conferência de quarta-feira à noite. “O século XX, dizia o pensador Edgar Morin, é o século da imagem. Nós entramos no século XXI e o Brasil ainda não se advertiu desse facto”, começou por dizer Agnaldo Farias. “Somos muito analfabetos no que diz respeito à imagem, não temos a menor intimidade com ela e achamos que é totalmente irrelevante. Como se a linguagem visual fosse subserviente do discurso verbal o que não é absolutamente verdade”, acrescentou. “Um país que tem artistas como Millôr Fernandes, Jaguar ou Cássio Loredano tem de se orgulhar. É gente de primeira grandeza.”

O curador e académico defendeu ainda que, por sua vez, a história de arte também “negligencia” a produção de cartoonistas e de “chargistas”, considerando-a secundária só porque é bem-humorada. “Na historiografia somos muito sisudos”, disse. “Estou aqui para defender o humor e a ironia”.

Millôr era um erudito. Versado em línguas, era um especialista em escolas teóricas que gostava de se definir como “um escritor sem estilo” numa altura em que no Brasil - eram os anos 1960 -, ainda se discutia a necessidade de os artistas terem um estilo, de “terem um determinado tipo de pegada” que nos faz reconhecer o seu trabalho como deles. Como quando lemos um texto de Guimarães Rosa sem saber que foi ele que o escreveu e percebemos à primeira vista que estão ali traços da sua autoria.

“Millôr já pertence a outro momento”, explicou Agnaldo Farias. “Millôr, com muita tranquilidade, vai passando pelos diversos géneros literários tanto faz sonetos como haikai  , e faz o mesmo nas artes visuais” (e mostra um desenho em que se vê a proximidade do trabalho de Millôr com o trabalho de Miró da década de 1920 e um outro desenho em que o seu traço se aproxima do de Picasso).

Ao olhar para a obra artística de Millôr e para a forma como integrou a sua assinatura nela, Farias lembra que é interessante ver como ele era uma pessoa tão consciente da sua genialidade que até usava o próprio nome como matéria-prima. “A palavra Millôr, sendo ela própria plástica, elástica, maleável aparece nas suas mais variadas versões sem nenhum estilo. Não estamos acostumados a isso. Até porque os conscientes da sua genialidade não são tão geniais assim. E quando isso acontece é de facto extraordinário. Porquê? Porque Millôr não só coloca o seu nome como uma grande estrutura, o seu nome passa a ser uma espécie de promontório de alguma coisa muito elevada a partir da qual você pode contemplar o mundo”, concluiu Farias. 

Os Millormaníacos

E quem viu Millôr contemplar o mundo durante décadas foi o seu amigo Jaguar. O cartoonista brasileiro, fundador de O Pasquim esteve a seguir na mesma Tenda dos Autores a conversar com os humoristas Hubert e Reinaldo, que nos anos 70 também começaram a sua carreira neste jornal satírico onde todos eram amigos do homenageado da FLIP. Mais tarde, Hubert e Reinaldo fundaram o jornal humorístico o Planeta Diário, que foi o embrião do Casseta e Planeta, o programa de televisão.

"Eu, quando bebia, não tinha amnésia. Agora tenho 'amnésia abstémica’. Eu embaralho tudo”, brincou Jaguar ao baralhar-se nas datas de alguns acontecimentos. Lembrou que com a idade com que os jovens de hoje começam a ler Harry Potter, ele lia Millôr. “Muitas vezes nem entendia as piadas direito". Mas se não fossem essas leituras se calhar hoje não estaria na FLIP a falar do amigo.

Quando fundaram o jornal O Pasquim, que foi muito importante a usar o humor no combate à ditadura brasileira, sabiam que toda a gente ia dizer mal e por isso decidiram logo “cortar a onda” e dizer à partida que se tratava de um pasquim. Em 1969, foram todos presos. Só Millôr e o cartoonista Henfil escaparam nessa altura à prisão.

Na Tenda dos Autores, Jaguar desmentiu os boatos de que Millôr teria escapado à prisão militar por ter as costas quentes. “Isso não é verdade. Felizmente aqui no Brasil tudo é uma ‘esculhambação’ completa, inclusive a repressão. Eles resolveram prender o Millôr, mas tinham prendido o poeta Ferreira Gullar e um outro cara e não tinham lugar no carro. Chegaram até a passar na casa dele mas resolveram seguir viagem. Gullar conseguiu avisar alguém de que ele seria preso no dia seguinte e o Millôr - que era um sujeito brilhante - deu o fora”, contou Jaguar. 

Mais tarde a polícia militar convenceu os presos seus colegas de O Pasquim que se Jaguar se entregasse eles seriam libertados. Por isso, Jaguar, que não acreditava nessa teoria, acabou por se ir entregar à polícia para não ficar com um peso na consciência. “O pior é que eu nem tive o gostinho de ser preso, não. Ainda paguei táxi para ir para a prisão, e foi uma nota preta.” 

Esteve três meses preso. Agora conta que foi o melhor período da sua vida. “Quando digo isto, as pessoas acham que estou fazendo piada. Eu acordava de manhã, levei para ler o romance Guerra e Paz. Onde é que você vai ler Guerra e Paz?” Claro que os outros não foram libertados. E ele virou herói. “Quando saí as moças estavam todas encantadas. Foi muito bom.”

Jaguar também fez rir a plateia ao contar que Chico Buarque teve uma discussão com Millôr num bar do Leblon que acabou com cuspidelas e coisas a serem atiradas pelo ar.  Chico era muito amigo de Tarso de Castro, um editor de O Pasquim que não se dava com Millôr. Perguntou-lhe: “O que você tem contra mim?” e como Millôr não lhe respondeu, Chico cuspiu-lhe. “Millôr atirou tudo que tinha na mão na direcção do Chico, mas acertou no garçom. Contei essa história dizendo que o maior humorista brasileiro brigou com o maior compositor brasileiro. Me ligaram para perguntar se eu tinha brigado com o Martinho da Vila", relembrou, rindo.

"O cara que eu mais admirei na vida foi o Millôr. O maior tradutor, o maior dramaturgo, o maior desenhista, o maior cartoonista brasileiro. Só não é o maior poeta porque era inteligente demais para ser poeta”, concluiu Jaguar.

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