Mesmo os habitantes das grandes cidades vivem em “aldeias” do ponto de vista social

Equipa co-liderada por cientista português analisou as redes de interacções sociais em Portugal e no Reino Unido através dos dados de chamadas telefónicas.

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A análise das telecomunicações moveis em Portugal sugere que a seres humanos se organizam instintivamente em comunidades sociais compactas Paulo Pimenta

Quem vive numa grande cidade já terá reparado que, por vezes, é como se vivesse numa aldeia. Dá-se sempre com as mesmas pessoas, há bairros onde nunca vai, partes da cidade que nem sequer conhece. Um estudo agora realizado com base nas comunicações telefónicas de pessoas residentes em grandes e pequenas cidades no Reino Unido e em Portugal mostra que essa impressão corresponde mais à realidade do que imaginamos. Os resultados foram publicados na revista Journal of the Royal Society Interface.

O estudo da forma como a urbanização crescente do mundo moderno afecta as interacções sociais interessa os sociólogos há muito tempo. Mas até agora, para realizar os seus estudos, os especialistas baseavam-se em inquéritos qualitativos, explica em comunicado o Massachusetts Institute of Technology (MIT). Essencialmente, isso consistia em perguntar às pessoas com quem é que tinham falado ao telefone e durante quanto tempo – um método sujeito a erros de avaliação e de memória por parte dos inquiridos.

Mas agora, e pela primeira vez, a equipa do português Luis Bettencourt, do Instituto Santa Fé nos Estados Unidos, juntamente com colegas do MIT, com engenheiros informáticos e com especialistas de empresas de telecomunicações europeias, foi directamente buscar os dados quantitativos – e exactos ao pormenor – das comunicações telefónicas. Mais precisamente, os cientistas tiveram acesso aos registos da maioria das chamadas terrestres realizadas no Reino Unido durante um período de um mês, em 2005 – bem como aos de milhões de chamadas de telemóvel realizadas em Portugal durante um período de 15 meses, entre 2006 e 2007.

Uma vez retirados quaisquer elementos que pudessem permitir identificar os interlocutores, os cientistas encontraram-se perante uma autêntica mina de ouro de relações interpessoais, completas com data, duração, local da chamada, etc.

“Trata-se de uma matéria-prima sem precedentes, que vai provavelmente alterar a nossa compreensão da sociedade, abrindo potencialmente o caminho à emergência de uma área que algumas pessoas já começam a chamar de “ciências sociais computacionais”, diz o co-autor Carlo Ratti, do MIT, no mesmo comunicado.

Milhões de telefonemas
Os cientistas reconstruíram, a partir dessa massa de dados, redes de interacções telefónicas para cada aglomeração britânica e portuguesa, onde cada pessoa era representada por um nó da rede e as suas comunicações telefónicas por ligações com outros nós.

Viver numa grande cidade ou numa pequena vila não são a mesma coisa – o ritmo de vida é de facto diferente e o número de pessoas com que os habitantes contactam é maior numa grande cidade do que numa aldeia. E, de facto, os cientistas confirmaram que assim era: o número de chamadas telefónicas, bem como o número de interlocutores telefónicos, aumentava com o tamanho da localidade de residência. E até aumentava mais do que proporcionalmente. Por exemplo, se uma dada cidade tivesse o dobro dos habitantes de outra, o número de telefonemas e o número de interlocutores dos habitantes da cidade maior era mais do dobro dos respectivos números associados à cidade mais pequena.

“Os resultados indicam que à medida que as cidades ficam maiores, o nosso número de contactos sociais aumenta de uma forma [supra-linear] que eu previ num artigo que publiquei na Science" e que, na altura, o PÚBLICO noticiou, disse-nos Luís Bettencourt.

Porém, a equipa obteve agora um resultado relativamente surpreendente a outro nível. Acontece que, seja qual for o tamanho da cidade onde vivemos, os cálculos mostraram que a probabilidade de que os nossos amigos se conheçam entre si não se altera. Por outras palavras, as nossas redes sociais são todas semelhantes desse ponto de vista – o que, concluem, sugere que os seres humanos se organizam instintivamente em comunidades sociais compactas. E isso se verifica tanto na Lixa, aldeia do Norte de Portugal, dizem os autores – onde 6000 pessoas vivem numa área urbana de apenas três quilómetros quadrados – como na área metropolitana de Lisboa. O que obviamente não impede, enfatizam contudo, que quem vive na Lixa tenha menos margem de manobra para escolher o seu círculo social do que quem vive em Lisboa.

“Este é um dos resultados curiosos deste novo estudo”, explica-nos Luís Bettencourt. “Nas grandes cidades, há em geral maiores oportunidades de interacção com mais indivíduos e indivíduos mais diversos. Nós verificámos isso para Portugal (e para o Reino Unido). No entanto, o que vemos também é que as pessoas que conhecemos têm uma alta probabilidade de se conhecerem entre elas – o que quer dizer que, independentemente do tamanho da cidade, criamos redes sociais coesas (como nas cidades pequenas ou nas aldeias). Numa grande cidade, no entanto, essa rede social é mais o produto da nossa escolha e nesse sentido tem um carácter diferente da de uma aldeia.”

“As pessoas tendem a pensar nas cidades como num conjunto de pessoas, de prédios, de estradas, de canalizações e por aí fora”, diz ainda o cientista no já referido comunicado. “Mas a um nível mais fundamental, as cidades são na realidade conjuntos de ligações. Essas ligações formam redes de pessoas e de organizações que permitem a geração de todos os produtos da civilização, das economias modernas e da inovação acelerada às burocracias complexas e às instituições políticas.”

A próxima etapa do trabalho? “A nossa investigação está agora focada em duas questões principais: a heterogeneidade urbana dentro de cada cidade e o desenvolvimento humano em ambientes urbanos”, responde-nos Luís Bettencourt. “O primeiro ponto tem a ver com a enorme diversidade que existe dentro de cada cidade (económica, étnica, de conhecimento, etc.). Do ponto de vista teórico, estamos [assim] a construir uma teoria estatística das cidades. Quanto ao segundo ponto, trata-se de entender melhor a interacção entre a vida de cada pessoa e o seu acesso a serviços, os custos [que isso implica] em termos de tempo e dinheiro, a sua capacidade de construir novas redes sociais, etc. Temos um grande projecto, financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, para estudar o desenvolvimento dos bairros de lata."

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