Uma relação umbilical e fatal

A língua portuguesa celebra agora oito séculos de vida. E o crioulo de Cabo Verde, o primeiro filho que gerou nos trópicos, na confluência de rotas, gentes e culturas já conta mais de 500 anos. Sim, porque antes mesmo do português chegar à América ou à Ásia criou uma língua nova forjada na sua relação com os dialectos de África trazidos na boca dos escravos para este arquipélago descoberto a partir de 1460 por navegadores portugueses. Hoje, a língua portuguesa é falada por 244 milhões de pessoas em todos os continentes, mas o crioulo de Cabo Verde é a sua primeira experiência plena de globalização. Um exemplo único e acabado de crioulidade que encanta, mas não chega para os cabo-verdianos se relacionarem com o mundo. Daí a fatalidade. A língua portuguesa, uma das grandes línguas globais, é para sempre a ponte do cabo-verdiano até ao outro lado. Mas esta relação fatal não é de sentido único. Porque o futuro da língua portuguesa também mora na afirmação internacional da cultura de Cabo Verde que se expressa em toda a sua potência crioula.

As celebrações dos 800 anos da língua portuguesa têm como base não a génese do idioma - momento que é aliás impossível determinar -, mas a data em que foi redigido o testamento do terceiro rei de Portugal, Dom Afonso II, 27 de Junho de 1214. É o ponto de referência mais importante para o português enquanto língua escrita.

Hoje, a pátria da língua portuguesa equivale a 7 por cento da superfície continental da Terra. Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde. É nesta representatividade territorial e humana garantida sobretudo pelo Brasil e pelos países africanos que, acredita Alberto Carvalho, reside um “futuro bastante promissor” da língua portuguesa. Segundo o professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o futuro das línguas no contexto internacional está dependente do poder político e económico das nações que as falam. Ora, estima-se que os países que falam o português representam 4 por cento da riqueza mundial.

“São espaços linguísticos de grande potencial quer humano – porque são países muito novos onde, por isso a população vai ainda crescer muito –, e sobretudo porque são países muito ricos”, afirma Alberto Carvalho. Portanto, são grandes centros de atracção do mundo para a língua portuguesa. É só ver o interesse que a CPLP, enquanto comunidade de povos e de língua, está a despertar junto de países como a Guiné-Equatorial - cuja adesão foi recomendada esta semana pela cimeira extraordinária dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos oito que teve lugar em Maputo - mas também o Japão, Turquia, Geórgia, Marrocos, Namíbia, Peru. A procura do português cresce em cada dia nos grandes centros linguísticos do mundo. É o sexto idioma mais falado no mundo, o quinto mais usado na Internet e o terceiro mais usado nas redes sociais Facebook e Twitter. Acredita-se que em 2050 serão mais de 350 milhões os falantes da língua portuguesa, número suficiente para mantê-la no topo dos idiomas mundiais. Apesar de admitir que este futuro está “amarrado” ao sucesso político e económico dos países lusófonos – a maioria rica em petróleo e outros recursos naturais –, Alberto Carvalho prefere acreditar que a importância do português em relação às outras línguas depende muito mais da cultura.

“Uma cultura viva nos países africanos, no Brasil, em Portugal ... Cultura humana, em sociedade, escrita nos livros, nas formas musicais e tantas outras que têm um futuro bastante promissor”, declara o docente universitário.

A língua portuguesa em Cabo Verde
É um dado histórico. A escola entrou em Cabo Verde com o início da colonização portuguesa. Primeiro, a escola eclesiástica durante vários séculos. A seguir, a partir de meados do século XVIII, com a política desenvolvida pelo Marquês de Pombal e, um século depois, com o liberalismo português, a escola laica instalou-se na então colónia, por diligências empreendidas pelos Deputados cabo-verdianos às Cortes, em 1845, logo concretizada pela fundação da Escola Principal da ilha Brava, em 1848, num processo que não mais sofreria interrupção. Fruto desta escolarização, existe no país “um saber-fazer no plano do exercício da escrita administrativa ao serviço da organização do Estado”. Isso viu-se quando se deu a independência. “Cabo Verde tomou imediatamente conta das suas instituições sem problemas”, conta Alberto Carvalho. Aliás, dos mais altos dirigentes do país, após o 5 de Julho de 1975, grande parte era composta por antigos quadros da administração colonial formados nas escolas do arquipélago e em Portugal. A vida económica em Cabo Verde rege-se também por conceitos herdados da língua e cultura portuguesa, segundo Alberto Carvalho. Por exemplo, o conceito de propriedade. “Na ilha de Santo Antão, quando um animal de um proprietário invade ou destrói a horta de um vizinho, o dono da horta diz: “eu vou mandar coimar o fulano. Ou seja, eu vou recorrer à justiça institucional para punir esse fulano. Assim fala Nha Joja, mãe de Mané Quim, em “Chuva Brava”, de Manuel Lopes”. Ora, o conceito de propriedade privada não é africano. É, creio bem, um conceito difundido em Cabo Verde pela ideologia judaico-cristã, pelos judeus idos para Cabo Verde no início do século XVI”, explica o antigo docente da UL. Outra faceta da vida pública caboverdiana de herança portuguesa, ou se se preferir europeia, é a competência para o grande comércio. “Esta aptidão dos caboverdianos para o comércio de loja com balcão, de porta aberta ao público, com uma contabilidade de “deve” e “haver”, que distingue o “apuro” do “lucro”, com um agudo sentido da honra, não é própria das culturas africanas. Se quisermos ver as coisas a frio, constatamos que, ainda hoje, na área africana sudanesa, fronteira a Cabo Verde, a maior parte do comércio de porta aberta é detida por libaneses. Repito, os cabo-verdianos detêm um saber histórico neste domínio económico-mercantil que vem muito da escola judaico-cristã introduzida no arquipélago no século XVI pelos judeus portugueses expulsos”, afirma Alberto Carvalho. Mas não é só na organização do Estado e da economia que se manifesta a herança veiculada pela língua portuguesa. Ela vive também na cultura autóctone criada nas dez ilhas atlânticas.

“Uma cultura surpreendentemente rica, acima do que seria de esperar por um desconhecedor da realidade” e que cada vez mais ganha projecção na cena internacional. E isto, embora o país seja pequeno em território, número de habitantes e poder económico, “é como agora se diz uma mais-valia”, sentencia o professor catedrático. Para o país-arquipélago e para a língua portuguesa, já que estão umbilicalmente ligados. Para sempre.

Jornalista. Texto originalmente publicado no jornal A Semana (Cabo Verde) a 25 Julho 2014

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