Istambul, já ali!

A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica entrará em vigor no próximo dia 1 de Agosto. Treze Estados já ratificaram este instrumento internacional juridicamente vinculativo, e Portugal foi o primeiro entre os membros da União Europeia a fazê-lo. Vinte e três outros Estados já a subscreveram, estando a caminho da ratificação.

É conhecida como a Convenção de Istambul, tomando o nome da cidade onde foi aberta à subscrição, a 11 de Maio de 2011. Muitos factores fizeram deste documento uma referência à escala global, um golden standard, como lhe chama a Organização das Nações Unidas. Desde logo, porque reconhece sem complexos que a violência contra as mulheres constitui uma grave violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação. As vítimas estão no centro de todas as preocupações, sendo que, no caso da violência doméstica, inclui mulheres e homens, crianças e idosos. É consagrada a fórmula dos quatro PP, sinónimo de prevenção, protecção, penalização e políticas (integradas). Não é excluída nenhuma forma de violência contra as mulheres, em tempo de guerra e em tempo de paz. Responsabiliza os Estados por constituir como infracções penais crimes como a mutilação genital feminina, ou o uso da força no casamento, no aborto ou na esterilização. O stalking, o assédio sexual, a violação a coacção sexual, a violência psicológica não foram esquecidos. Na Convenção de Istambul é dada uma protecção especial às crianças testemunhas de crimes de violência doméstica, e interdita-se em absoluto a invocação da cultura, da tradição ou da chamada "honra" como justificação para qualquer crime de género. Presta-se grande importância às circunstâncias agravantes, quando os crimes forem perpetrados por algum membro da família, na presença de menores ou com recurso a armas. Reconhece-se o papel crucial das ONG e das agências governamentais dedicadas a este combate. Dispõe de um mecanismo de monitorização forte e independente (Grevio), no qual se contempla, pela primeira vez numa convenção, um papel para os Parlamentos nacionais, quebrando o circuito fechado e sigiloso dos relatórios de parada e resposta com os Governos.

Não é possível implementar políticas eficazes sem um conhecimento profundo dos fenómenos ou dos sectores a que se dirigem. As estatísticas à escala europeia conhecidas até hoje em matéria de violência contra as mulheres não são credíveis, nem suficientes, nem comparáveis. Primeiro, há que estabelecer em todos os Estados um sistema de recolha de dados que se baseie nos mesmos métodos, nos mesmos critérios e nos mesmos conceitos. É isso que estipula a Convenção de Istambul. O que se tem feito até agora, à escala do continente, são mixórdias estatísticas, ou, se quisermos, aproximações à realidade.

O estudo mais credível e completo feito até hoje, apresentado em Março deste ano, é o inquérito realizado pela Agência para os Direitos Fundamentais, da União Europeia, no qual foram entrevistadas pessoalmente 42.000 mulheres, a maior amostragem de sempre. E as suas conclusões são aterradoras. A realidade é muito pior do que imaginávamos!

            - 1 em cada 3 mulheres (33%) sofreu de agressões físicas ou sexuais, ao longo da vida;

            - 13 milhões de mulheres continuam a ser agredidas no tempo presente;

            - 5% das mulheres declaram ter sido violadas;

            - 20% das mulheres declaram ter sido vítimas de stalking;

            - 43% das mulheres foram vítimas de violência psicológica;

            - 35% das vítimas foram sexualmente abusadas antes dos 15 anos de idade.

A grande maioria das vítimas não apresenta queixa, por vergonha, por receio da dupla vitimização, da humilhação, por medo puro, e por não acreditar na protecção do sistema judicial e policial, o que deita por terra, por defeito, todas as estatísticas conhecidas.

E, se isto se passa na União Europeia, imagine-se a situação em certos Estados-membros do Conselho da Europa, mais a leste, onde a tradição, a cultura e a religião muito contribuem para a desigualdade, a discriminação e a violência de que são vítimas as mulheres.

Permita-se uma nota pessoal a este propósito. Em três décadas e meia de intervenção política, produzi seguramente muitos milhares de discursos, palestras, comícios, conferências, iniciativas legislativas. Espremidas tantas palavras ditas e escritas, raras vezes se recolhe a sensação de ter contribuído, de facto, para a felicidade de pessoas concretas. Ter sido o autor da resolução e da recomendação que em 3 de Outubro de 2008 foram aprovadas por unanimidade pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, em Estrasburgo, a propor a elaboração desta convenção, e ter acompanhado todos os seus passos, da redacção até à entrada em vigor, gera um sentimento agradável de ter contribuído para algo de bom para muitos milhões de pessoas. Traduzir a Convenção de Istambul em actos concretos, passar do papel à realidade, é uma tarefa colectiva que convoca toda a sociedade. Não é uma questão de mulheres para mulheres, visão redutora a evitar. Os homens devem apresentar-se na frente do combate a este flagelo, também em Portugal. Temos sido poucos a dar a cara. Há pouco Cavaco, pouco Passos, pouco Seguro, no cartaz desta luta. Será que já fizeram as contas ao rombo que a violência contra as mulheres dá nas contas públicas?...

Deputado do PSD, relator-geral sobre a Violência contra as Mulheres (AP-Conselho da Europa)

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