Paulo Mendes da Rocha: a arquitectura é sempre oportuna

Na América dos Trópicos não há passado. Por isso, Paulo Mendes da Rocha, o mais influente arquitecto brasileiro da actualidade, fala sempre de futuro. E também de todo o homem que nasce arquitecto porque “o que nos move é a angústia da necessidade e da urgência.” Perfil do arquitecto convidado desta edição.

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Paulo Mendes da Rocha é o arquitecto convidado nesta edição, seguindo-se a Eduardo Souto de Moura, em 2013 Daniel Rocha

Paulo Mendes da Rocha nasceu em Vitória, capital do estado Espírito Santo, em 1928, numa família que cruzava raízes baianas e italianas. Foi o segundo brasileiro a receber o maior prémio internacional de arquitectura, o Pritzker, em 2006, depois de Oscar Niemeyer ter sido distinguido em 1988.

O seu pai era engenheiro, especializado em recursos navais e hídricos, tendo tido grande influência na sua formação. Mais tarde, em 2000, resumiu assim a infância: “Morei no Rio de Janeiro e em São Paulo. Fui aí educado, um pouco no sertão, nas fazendas de cacau do Rio Doce e nas serrarias, junto às obras pesadas da engenharia, no mar.” Diplomou-se em São Paulo, na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Mackenzie em 1954. Três anos depois traçava um dos seus edifícios mais emblemático na capital paulista, o Clube Atlético Paulistano. “A partir daí” – referiu depois –, a sua obra “fez um percurso basicamente linear”. Acabaria por reconhecer: “Não que isso seja vantagem, quem me dera poder fazer em cada momento o que se deve fazer!”. Tornou a arquitectura de João Vilanova Artigas uma referência para a sua obra, ajudando ao seu relançamento internacional, já depois da morte do grande mestre paulista. Ao fazê-lo contribuiu para a confirmação da vitalidade da arquitectura contemporânea brasileira, encontrando os seus próprios temas: “Minha arquitectura evoca a habilidade do homem em transformar o lugar que habita, com fundamental interesse social, através de uma visão aberta, voltada para o futuro”. É este discurso que se espera retome em Paraty, onde, com o crítico italiano Francesco Dal Co, especialista na obra do primeiro Prémio Pritzker brasileiro, conversará sobre as afinidades entre dois territórios singulares: Veneza e Paraty - sessão já esgotada. Paulo Mendes da Rocha é o arquitecto convidado nesta edição, seguindo-se a Eduardo Souto de Moura, em 2013.

Resistência ao desastre
Durante parte da ditadura militar brasileira (1964-1985), Mendes da Rocha foi impedido com Artigas de fazer e ensinar arquitectura. Era professor na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Seria depois reintegrado. Mas só no início na década seguinte, a sua presença foi celebrada. Numa famosa entrevista, publicada na revista Caramelo, criada pelos estudantes da FAU em 1990, caracterizou assim o novo Brasil, que entrava num processo de democratização: “Trata-se de ter consciência do momento em que vivemos. É um momento de transformações na vida do homem, e a expressão que ele dará a isso deve ser serena e belíssima. É o momento de compreender que uma pirâmide não é uma forma piramidal, simplesmente, mas um desejo daquela época de colocar uma pedra a 30 metros de altura naqueles horizontes, e que a inteligência do homem foi capaz de realizar. Que raciocínio você quer fazer, que discurso você deve querer atribuir a isso que aí está, e o que devemos fazer agora?”

Tinha começado, em plenos anos de 1980, a ser sistematicamente divulgado nos meios internacionais. Obras suas da década de 1950, lado a lado com edifícios mais contemporâneos, seriam nesse periodo dissecadas pela mesma crítica que, de fora do Brasil, apontara o dedo à arquitectura brasileira desde a construção de Brasília. O Museu Brasileiro de Escultura, em São Paulo, que desenhou no final da década de 1980, impunha-se como imagem maior da vitalidade da arquitectura do Brasil, surgindo como contraponto a um pós-modernismo que, no plano internacional, se encontrava já esgotado.

Durante esse período, tinha vindo a imprimir aos edifícios um carácter cada vez mais acertado do ponto de vista estrutural, numa releitura criativa dos principios de Niemeyer. O arquitecto carioca defendera, a quando da construção da capital brasileira, a criação de edifícios definidos “pela própria estrutura, devidamente integrada na concepção plástica original”. É esta a marca maior da arquitectura brasileira e a saída que constrói para a arquitectura moderna. Dando continuação a um processo de depuração, os edifícios de Mendes da Rocha atingiram uma expressão próxima de uma aparência “minimalista”, aspecto fundamental na redescoberta que então se fazia. A sua obra surgia consagrada como uma das mais engenhosas do final do século XX, manifestando-se avessa ao lado mais espectacular da produção que haveria de se impor na transição do milénio. A entrevista que deu ao PÚBLICO, em 2003, permitiria perceber melhor a sua posição na época: “A arquitectura tem, antes de mais nada, de lutar muito no sentido da resistência ao desastre. Temos de nos defender da tendência para degenerar. Só pode degenerar algo que é excelente.”

Mas a obra de Mendes da Rocha simbolizava também a continuação do moderno como um designio sistematicamente inacabado no Brasil. Este facto acabaria por dificultar o seu enquadramento na cronologia pós-moderna a que pertencia (e pertence). A leitura que propunha da sua arquitectura era então sintetizada numa resposta que deu também ao PÚBLICO, mas já em 2006: “Não há nenhum estilo que garanta a modernidade. O que é feito capaz de constituir uma visão de moderno, antes de mais nada, é ser contemporâneo e portanto oportuno.” Num depoimento anterior, de 2001, para o JA - Jornal Arquitectos, sobre a Casa para a família do engenheiro António Gerassi (São Paulo, 1988), afirmava: “Em princípio, há uma questão muito intrigante: você pode fazer uma casa com o material que tiver. Isso não é jogo de palavras. É uma verdade absoluta. Se possui só lixo, você faz uma bela casa na favela. Um arquitecto, então, surge do povo e faz uma casa linda”. Há uma resposta de “sobrevivência” que, apesar dos discursos mais tecnocráticos, não inviabiliza a existência paralela da construção plástica, informada e erudita. Uma profunda convicção sobre a capacidade regeneradora da arquitectura na transformação da paisagem tropical – por princípio hostil – emerge como central. Por isso, “todo o homem nasce arquitecto … o que nos move é a angústia da necessidade e da urgência.”

A dimensão artística do homem
O homem é portanto o centro do discurso de Mendes da Rocha. Mas não é um homem fruidor ou consumidor do espaço arquitectónico; trata-se antes de um homem que o constrói através da inteligência como actua no mundo e é nesse sentido que existe convicção no exercício do arquitecto, como esclarece também em 2006: “A arquitectura (…) é justamente a dimensão artística do homem e uma totalidade, uma forma específica de conhecimento capaz de mobilizar tudo (antropologia, linguística, sociologia, ciências exactas…) para dizer: 'Façamos assim'.”

A importância da obra de Mendes da Rocha na arquitectura contemporânea brasileira mede-se igualmente pelo reflexo que tem no ambiente profissional de São Paulo, de onde são actualmente originários os mais dinâmicos escritórios do país. Alguns dos seus desenhos de residências (como as duas casas do Butantã, 1964) ou programas de intervenção patrimonial, caso da Pinacoteca do Estado (São Paulo, 1993, Prémio Mies van der Rohe para a América Latina) que adaptou o antigo Liceu de Artes e Ofícios a espaço museológico, têm-se impondo como modelos junto da produção de outros arquitectos. Aspectos mais radicais da sua obra acabaram, contudo, por ficar sem réplica. Foi o caso do Centro Cultural FIESP (1996), onde uma nova estrutura em aço parasita a sede brutalista da Federação das Indústrias de São Paulo (1969-1979), do escritório de Rino Levi. É, provavelmente, com a Casa Millan (São Paulo,  1970), o seu projecto mais provocador.

Na capital paulista, trabalha em parceria com grupos de arquitectos mais jovens, facto que assegura a existência na cidade de fortes ligações intergeracionais. Este processo de trabalho permite uma forte flexibilidade e, simultaneamente, garante a consolidação progressiva de uma cultura arquitectónica regional, forte no contexto internacional. Interpelado sobre o sentido “brasileiro” da sua produção, respondeu: “Talvez seja melhor dizer que não há nem deveria haver uma 'arquitectura brasileira'. Não faz muito sentido, para mim, defender um caracter nacional. O que, entretanto, se pode imaginar de modo sadio é que há algo de peculiar na experiência da América”. Este aspecto posiciona-o como um “arquitecto americano”, ou seja, alguém que reformula uma paisagem para a América dos Trópicos a partir de indagações profundamente enraizadas numa cultura nova, em construção, como é (ainda) a do Brasil, em oposição ao mundo velho e gasto da Europa. Em Lisboa, com Ricardo Bak Gordon e os MMBB (Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga), construiu um dos mais extraordinários edifícios brasileiros fora do Brasil, o Museu dos Coches (2009-2014), à espera de inaugurar. Funciona como um enclave dessa cultura americana no coração da velha sede do Império. As suas repercussões no traçado futuro da cidade são ainda hoje insondáveis. Mas serão determinantes numa alteração de significado e direcção. Uma regeneração de que a cidade precisava, uma oportunidade ganha porque, como diria Mendes da Rocha, uma vez mais a propósito da sua profissão de arquitecto: “Uma arquitectura inoportuna não pode existir”. Esta é, segundo acredita, uma das premissas fundamentais da arquitectura contemporanea e sem dúvida, para lá do futuro, sobre isto haverá também de falar em Paraty. 

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