Para trás é que é o caminho

Com Sonhador, fica completa a transformação dos Expensive Soul em oleada máquina de soul e de funk. Os rapazes de Leça da Palmeira estão uns homens feitos.

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O ano é 2004 e o país um lugar sem troika. Uns tais de Expensive Soul sobem ao palco da discoteca Estado Novo, em Matosinhos. Eram, acreditava então este escriba, uns perfeitos desconhecidos. Mas, quando os dois entram em palco, começa a berraria no povo, em particular na facção feminina – uma espécie de “Beatlemania” à moda de Leça da Palmeira.

Nesse ano em que lançavam o seu primeiro álbum, B.I., os Expensive Soul eram uma banda de hip-hop com o ocasional desvio R&B e reggae (Eu não sei tornar-se-ia ubíquo, com a ajuda da série televisiva juvenil Morangos com Açúcar). Dez anos volvidos, ouvimos Sonhador, o quarto álbum de originais da dupla de New Max (Tiago Novo, cantor) e Demo (António Conde, MC), ambos com 32 anos, e perguntamos: é a mesma banda?

É que há aqui sopros a encavalitarem-se uns nos outros para chegar ao Altíssimo (sendo que o Altíssimo é a Motown e outras casas do bem). Há aqui um cantor de pleno direito, seguríssimo nos falsetes. Há uma flauta a rodopiar de felicidade, um órgão Hammond a passear-se sobre o groove do baixo e os coros. Há uma grande canção, Cúpido, guiada por lustro de cordas e baixo irrequieto. Há um quase-gospel, Não te vás já, e um exercício (Electrificado) que lembra Viagens, de Pedro Abrunhosa, tamanha é a febre de sopros endiabrados.

Estamos a milhas da banda hip-hop de 2004. Os Expensive Soul são hoje uma máquina de soul e de funk que bebe das melhores colheitas do passado. “No B.I., o que ouvíamos era o que se estava a fazer nos Estados Unidos na altura. Andamos para trás à medida que vamos andando para a frente”, diz New Max, em conversa com o Ípsilon na sala de ensaios do grupo, montada num antigo bar do Porto.

Mostra-nos o iPod. Há lá discos de Timothy Wilson, grande da velha soul, dos Poets Of Rhythm, que pregavam a soul no deserto dos anos 1990, mas também de Fausto. New Max entusiasma-se e desfia nomes: gosta de Al Green e Otis Redding, mas também da Daptone (editora contemporânea, casa de Lee Fields, Charles Bradley e Sharon Jones), dos Isley Brothers (“Têm sete ou oito discos fabulosos com esta sonoridade soul”) e de Bobby Byrd. “Sempre que ouvia o ‘Get up!’ [da canção Get up (I feel like being a) sex machine, de James Brown] nunca sabia quem fazia a resposta. Era o Bobby Bird. Era o backing vocal do James Brown, estava sempre ao lado dele. Tem um disco a solo, produzido pelo James Brown, que é inacreditável.”

 

À procura do calor

Não é de agora esta fixação dos Expensive Soul com a música negra que se fez nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970. O álbum anterior, Utopia (2010), já andava por esses territórios. A canção O amor é mágico colou-se na cabeça de muitos portugueses graças ao seu gancho viciante, um sample dos Impressions (I’ll always be here). “Plágio!”, gritaram alguns no YouTube. Demo ri-se: é a “falta de cultura em Portugal”.

Sonhador é o primeiro disco do grupo sem samples. Para recriarem o que ouviram nos catálogos soul e funk, chamaram 19 músicos (há pouco mais de uma década faziam concertos só os dois, com os instrumentais debitados por um MiniDisc). Um concerto orquestral na Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura deu o empurrão.

New Max explica: “O facto de termos ido buscar outras cores para este disco foi um bocadinho também porque passámos pela Symphonic Experience, com uma orquestra e o [maestro] Rui Massena. Percebemos que podíamos trazer estas cores para um disco porque resultou muito bem ao vivo. Mais pequenino, claro, porque aquele concerto foi com uma orquestra gigante”. Em vez de “um ensemble de cordas” com mais de seis dezenas de músicos (para além deles, a orquestra tinha mais uma centena de instrumentistas), têm um quarteto. Têm também tímpanos e pratos orquestrais, têm trompa, saxofones vários, uma galeria de teclados (alguns tocados por New Max, com escola de Conservatório) e mais instrumentos.

Queriam vintage, fizeram vintage. “Fomos buscar microfones antigos, compressores. A mistura é analógica, usámos fita. Foi um processo todo analógico”, explica o cantor, que é também produtor (Sonhador junta-se a um currículo onde já estão trabalhos de Rui Reininho e Salto, entre outros). New Max empreendeu uma busca em sites de leilões e de lojas da especialidade no estrangeiro. “É tudo material muito caro. Um gravador de fita de meia polegada custa cinco mil euros. Um microfone Neumann custa seis mil ou sete mil”, ilustra. Mas o investimento compensa: “Faz toda a diferença."

“Cada vez há menos estúdios. O pessoal virou para o digital”, conta New Max. “Já no disco anterior tinha procurado um bocado isso. Mas neste disco queria que fosse do início ao fim retro, com esta sonoridade. O digital é muito mais fácil, não ficas limitado às pistas, mas…”. A palavra surge depois: falta “calor” na música que é feita com pedaços de software que emulam o som antigo.

Para Demo, mais músicos e uma guinada convicta em direcção às décadas pré-rap representaram um desafio. “Não se fazem raps em cima disto. Vou-te dizer a verdade: foi muito difícil não me repetir, conseguir ir atrás de uma ideia, da primeira ideia existente, conseguir viajar nos raps dentro da música”, reconhece.

Partes do álbum foram gravadas na sala onde estamos, outras num estúdio de Matosinhos, mas a base do disco foi registada em Canedo, concelho de Santa Maria da Feira, no estúdio que New Max montou em casa (vive dos Expensive Soul e das ocasionais produções para outros artistas). Sim, a banda de Leça da Palmeira – a "terra mais bonita de Portugal", garantiam em Eu não sei – já só tem um membro residente em Leça da Palmeira. “Eu planto tomates”, argumenta New Max (e o argumento é de peso). “Procurei isso. Não me via a voltar para a cidade.”

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