Fracassos e ficções para quatro guitarristas

Ricardo Rocha, eterno descrente no futuro da guitarra portuguesa, continua a lançar álbuns em que parece argumentar contra si próprio. Resplandecente, fundado sobre cinco quartetos para guitarra, volta a testemunhar o génio do notável seguidor de Carlos Paredes.

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Ricardo Rocha e os seus três heterónimos, todos guitarristas: Ian Richardson, Pierre Ricard e Wolff Richard von Gerhard JOÃO OSÓRIO
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Ricardo Rocha e os seus três heterónimos, todos guitarristas: Ian Richardson, Pierre Ricard e Wolff Richard von Gerhard JOÃO OSÓRIO

Ian Richardson, Pierre Ricard, Wolff Richard von Gerhard e Ricardo Rocha são os nomes de uma impossibilidade. E cada vez mais o percurso do guitarrista português parece embrenhar-se nessa sua ideia de fracasso da guitarra portuguesa. Resplandecente é uma concretização do impossível, uma espécie de provocação ou de projecção ficcionada pelo músico daquilo que poderia ser – e nunca será, no seu entender – o mundo da guitarra. Desde logo, ao convocar três músicos de outras paragens (um irlandês, um francês e um alemão) para se lhe juntarem, espelhando não só a ideia de colapso iminente da Europa que toma por garantido, mas enquanto “fantasia de uma coisa que nunca vai existir – o estatuto internacional da guitarra”.

Nos quartetos de cordas do mundo erudito, nota o guitarrista, é comum cada elemento ter uma origem geográfica diferente. A fantasia é também essa – a de um reportório distendido sobre o mapa do território europeu. Só que Ian, Pierre e Wolff, como já se terá percebido, são apenas os heterónimos de Ricardo Rocha que lhe permitem artificialmente formar num disco o quarteto de guitarras portuguesas que interpreta o Quarteto Boreal, conjunto de cinco peças que compõe o núcleo central de Resplandecente. A correspondência adivinha-se assim: Ian, o Ricardo Rocha de barba; Pierre, o Ricardo Rocha de bigode; Wolff, o Ricardo Rocha de pêra. Um luxo, portanto.

Este jogo de heterónimos pessoanos – Ricardo Rocha cita mesmo o poeta no texto incluso no booklet antes de apresentar os seus companheiros: “Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo” – é, obviamente, uma graça. Mas “uma graça que tem uma componente muito séria e muito deprimente”, garante o músico. Essa componente, explicada resumidamente no parágrafo anterior, desemboca ainda na fatalidade quase garantida de que este Quarteto Boreal dificilmente virá a ganhar uma dimensão real em palco. Até porque mesmo ultrapassando a desconfiança geral que Ricardo Rocha nutre por muitos dos guitarristas da praça, o próprio processo de gravação deste conjunto de peças foi pensado inicialmente como algo partilhado com outros músicos. “Não deu porque era necessária bastante disponibilidade da parte dos outros elementos, uma vez que era preciso cada um estudar as suas partes, haver ensaios em conjunto – uma trabalheira imensa e que ia consumir muitíssimo tempo às pessoas.” Foi então, ao convencer-se da impraticabilidade da sua intenção inicial, que pegou no conjunto das peças e as atirou para o fundo de uma gaveta.

Só a custo, e após muita insistência do seu editor – “lá andou a massacrar-me”, descreve Ricardo Rocha –, acedeu a experimentar assumir as quatro guitarras na gravação. “Tinha mais ou menos uma noção de como a coisa podia soar, mas não tinha uma ideia nítida do ponto de vista físico. Quando constatei como soava, comecei a fazer tudo. Acho que não conseguiria fazê-lo agora. Foram três meses de paranóia total. Acordava às seis da manhã, começava às 6h45, e gravava entre as 7h e as 10h. Depois, recomeçava a seguir à hora de almoço e continuava até às cinco da tarde [para aproveitar os períodos de silêncio, umas vez que se ouvem crianças – que não suas – a brincar na proximidade da casa]. E às vezes ainda conseguia das nove às onze da noite, quando tinha umas coisas para retocar. Isto todos os dias.” A tarefa foi de tal forma intensa que a ida para estúdio se revelou impraticável em termos financeiros, pelo que montou computador e microfones na sua sala de estar.

É esse carácter obsessivo que ouvimos também no Quarteto Boreal de Resplandecente, com as quatro guitarras a funcionarem como ampliação de liberdade para aquilo que tecnicamente é permitido a uma guitarra fazer. “Como há uma série de obstáculos, por ser um instrumento extremamente limitado e cheio de falhas do ponto de vista técnico e dos sons que supostamente se querem ouvir (mas que na prática não se conseguem ouvir porque não se conseguem fazer), aqui, com quatro, atinge-se tudo aquilo que não se pode fazer”, confirma Rocha. “E subdivido as várias regiões da guitarra (agudos, médios e menos agudos) para criar um efeito ilusório de corpo.” O registo é mais uma vez prova do génio de Ricardo Rocha, funcionando como sobreposição de padrões, entre arpejos e pequenas melodias que se vão transformando lentamente noutra coisa qualquer, um processo de metamorfose constante e uma forma verdadeiramente notável de o guitarrista superar parte das suas frustrações com o instrumento, mesmo se a construção da sua obra vai avançando por um desbravar de caminhos que, na sua perspectiva e por muito bem-sucedidos que sejam, se revelam becos.

Só que, por muito que cada nova empresa possa ser reveladora de um novel conjunto de impossibilidades, o lastro que vai deixando é um repertório habitado por uma visão única e soberba do campo de batalha em que Ricardo Rocha transforma o instrumento, como se usasse a guitarra para se combater a si próprio. A sua aversão às dificuldades levantadas pela execução emerge assim como um milagre artístico debaixo de uma capa de tortura física. Se, até agora, Ricardo Rocha tem seguido uma via perfilhada por Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral de libertação da guitarra das mandíbulas do fado, em Resplandecente leva esse desígnio ainda mais além e, de certa forma, liberta a guitarra de si mesma, construindo peças que pertencem mais ao compositor do que ao executante. Ainda que a esperança de poder assistir à sua apresentação pública, e a certeza de que teria “um efeito gigantesco”, estejam enterradas para já. “É revelador da dimensão a que a guitarra se encontra”, insiste. “Se tivesse feito isto para um quarteto de cordas ou para dois ou três pianos, em qualquer parte do mundo haveria uma legião enorme de instrumentistas que tocariam logo. A guitarra situa-se numa dimensão minúscula e acho imensa graça quando oiço determinadas personagens dizerem que a guitarra está a florescer, está-se a transformar, é um instrumento riquíssimo. É de uma ignorância completa. A guitarra é e vai ser um fracasso. No final, ficarão uns pequenos registos de algumas pessoas que fizeram e estão a fazer alguma coisa, mas não vai passar disso.”

Fados e Scriabin

Apesar da sua descrença quase palpável no futuro do instrumento, Ricardo Rocha reconhece no surgimento recente de Miguel Amaral (que lançou o disco a solo Chuva Oblíqua e integra o Novo Trio de Mário Laginha) um importante acrescento de alguém que pode continuar a lutar pela conquista de uma voz independente para a guitarra portuguesa. “O Miguel Amaral tem um talento incrível”, concede, “e se ele continuar com persistência a querer fazer alguma coisa pode perfeitamente vir a conseguir. Tem ideias fantásticas e uma concepção estética de composição para a guitarra que é brilhante. Mas tem um caminho de espinhos pela frente que é perfeitamente horrível e muito desmotivador”, vaticina.

Em contracorrente com a exultação generalizada, Ricardo Rocha considera que o reconhecimento como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO “deixou a guitarra ainda mais ancorada no fado”. “O que não tem problema nenhum”, acrescenta, “está muito bem onde está e onde sempre esteve. Só que torna mais difícil porque a dada altura começam a surgir movimentos em torno da guitarra que são uma mentira total, actos de oportunismo para ganhar dinheiro e visibilidade – Portugal é um quintal de gnomos esponjosos. Para quem está de fora a tentar fazer uma coisa com alguma consistência e algum conteúdo, é desmotivador porque fica tudo dentro do mesmo saco e nivelado por baixo.”

O irremediável destino dos guitarristas, mesmo para aqueles que insistem em desenvolver um repertório erudito, é o de “acabar a tocar fados”. Mais uma vez, a situação que Ricardo Rocha descreve como perfeita para o instrumento. Depois de deixar de acompanhar Carlos do Carmo por achar que o seu lugar não é nos palcos, o músico toca agora regularmente acompanhando fadistas num restaurante discreto, onde se sente mais confortável. Está a dez minutos de casa, para onde regressa em seguida, e onde se atira de cabeça para este mundo paralelo de uma guitarra quase alienígena que vem construindo há mais de dez anos, com o propósito de documentar um percurso perscrutador, à conquista de novos espaços. Esses espaços, em Resplandecente, passam tanto pela composição dos quartetos inspirados pontualmente nas linguagens minimalista e impressionista como pelo regresso a um dos seus compositores de eleição – o russo Aleksandr Scriabin, de quem gravou dois prelúdios após o espanto fascinado com a forma escorreita com que as notas compostas para piano pousaram sobre a guitarra – “de repente, parece que ele escreveu aquilo para a guitarra, ficou perfeito”. Como se, ficcionando novamente e por alguns segundos, Ricardo Rocha quisesse acreditar que a guitarra é mais do que um grão de areia quando a compara à história e à tradição de instrumentos como o piano e o violino. “Aqui podemos sentir-nos contentes porque existem três pessoas a fazer repertório para um instrumento”, ri-se.

Só que este fracasso que Ricardo Rocha anuncia e repete para a guitarra carrega consigo uma contradição permanente. Porque criar uma obra sublime como a sua, a inscrever-se num fracasso, só pode significar o fracasso do próprio fracasso.

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